O objetivo deste artigo é trazer algumas ideias sobre processo estrutural e buscar resposta à indagação: falências e recuperações de empresas levam a processos estruturais?
A noção de processo estrutural surge nos Estados Unidos, entre 1950 e 1970, numa época de intenso ativismo judicial.
O início se dá em 1954, com o emblemático caso Brown v. Boardof of Education of Topeka, em que a Suprema Corte norte-americana entendeu que era inconstitucional a admissão de estudantes em escolas públicas americanas, com base num sistema de segregação racial.
Ao determinar que fossem aceitas matrículas de estudantes negros numa escola pública até então dedicada à educação de pessoas brancas, a Suprema Corte deu início a um amplo processo de mudança no sistema público de educação daquele país, fazendo surgir o que se chamou de sctrutural reform (Fredie Didier Jr. e Hermez Zaneti Jr. Curso de Direito Processual Civil. Processo Coletivo. 18 ed. V. 4. São Paulo: Editora Jus Podivm, 2024, p. 583-584).
Nos anos 1990, houve novo movimento de processos estruturais, com os casos Holt v. Sarver, pelos quais todo o sistema prisional do estado do Arkansas, também nos EUA, foi impugnado perante o Poder Judiciário, em demandas que visavam reformar completamente o sistema penitenciário e que serviram de base para outras demandas similares, deflagradas em 1993 contra quarenta outros estados norte-americanos (ob. cit., p. 584).
Tomando como ponto de partida essas situações pontuais, passou a se considerar decisão estrutural “aquela que buscasse implementar uma reforma estrutural (structural reform) em um ente, organização ou instituição, com o objetivo de concretizar um direito fundamental, realizar uma determinada política pública ou resolver litígios complexos” (ob. cit., p. 584).
Construiu-se assim a noção de que o “problema estrutural se define pela existência de um estado de desconformidade estruturada — uma situação de ilicitude contínua e permanente ou uma situação de desconformidade, ainda que não propriamente ilícita, no sentido de ser uma situação que não corresponde ao estado de coisas considerado ideal. Como quer que seja, o problema estrutural se configura a partir de um estado de coisas que necessita de reorganização (ou de reestruturação)” (ob. cit., p. 585/586).
Didier Jr. e Zaneti Jr., chegando ao tema que nos propusemos a abordar neste breve texto, pontuam com propriedade:
“As ações concursais — como, por exemplo, a falência e a recuperação judicial — também se baseiam em problemas estruturais. Elas partem de uma situação de desorganização, em que há rompimento da normalidade e do estado ideal de coisas, e exigem uma intervenção (re)estruturante, que organize as contas da empresa em recuperação ou que organize os pagamentos devidos pela massa falida. Essa desorganização pode advir do cometimento de ato ilícito, como no caso da falência, ou não necessariamente, como no caso da recuperação judicial.” (ob. cit., p. 587)
Ou seja, a insolvência empresarial pode, em muitos casos, envolver problemas estruturais que fazem com que o processo destinado a sanar aquele estado desconforme de coisas seja considerado um processo estrutural, em que se buscam soluções muitas vezes complexas, para situações também complexas, que envolvem múltiplos interesses, dos credores de todas as classes, dos trabalhistas aos subquirografários, da falida, da recuperanda e de vários outros atores cuja órbita de interesses é atingida pelas consequências da insolvência empresarial.
A preocupação do Poder Constituinte Originário em 1988, ao tratar dos pilares da ordem econômica no Brasil (fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa), com ênfase à sua função social e à proteção de outros direitos coletivos e difusos, previstos como princípios no art. 170 da CF, justifica plenamente que a insolvência empresarial seja inserida e vista no contexto dos problemas estruturais, que levam a processos estruturais, que demandam regulamentação e tratamento compatíveis com os valores protegidos pela Constituição Federal.
Nessa ordem de ideias, a recuperação de empresas e a falência podem levar a um processo estrutural, que “é aquele em que se veicula um litígio estrutural, pautado num problema estrutural, e em que se pretende alterar esse estado de desconformidade, substituindo-o por um estado de coisas ideal” (ob. cit., p. 590).
Em interessante estudo A Recuperação Judicial como Mecanismo de Tutela de Interesses Coletivos, Curitiba: Juruá Editora, 2024, p. 116-117), Felipe Scavazzini conclui, com propriedade:
“Embora sejam inegáveis os benefícios sociais da atividade empresária, o estado de crise empresarial implica conflitos (…) porque a origem do dano é comum, no caso a crise da empresa, mas atinge os grupos de interesse de modo e intensidade diferentes, sendo que seus membros não estabelecem entre si vínculos de identidade ou solidariedade (….) contudo, com a demonstração da recuperação judicial enquanto processo estrutural e instituto jurídico que desenha políticas públicas e formatação de mercado, espera-se que as alterações legislativas futuras e a aplicação da LREF sejam orientadas a partir do caráter estrutural. Assim, conclui-se pela necessidade de enxergar a recuperação judicial enquanto processo estrutural e vetor de políticas públicas em matéria empresarial, que abandona a visão puramente privativa para reconhecer a responsabilidade socioeconômica empresarial. Os desafios e debates não podem estar dissociados dessas premissas, como forma de conferir uma atuação empresarial responsável e que respeite os direitos de todas as coletividades envolvidas.”
E a importância do processo estrutural ultrapassou as fronteiras da academia e chegou ao Senado, que formou recentemente uma comissão de juristas especialistas na matéria, que deverá em breve apresentar proposta de Projeto de Lei para regulamentar o processo estrutural em nosso ordenamento jurídico.
Essa regulamentação é aguardada com otimismo, também no âmbito da falência e da recuperação de empresas, pois pode trazer mecanismos e ferramentas que permitam dirimir situações de litigiosidade intensa e talvez conciliar ou ao menos equilibrar o fiel da balança no que diz respeito aos múltiplos e muitas vezes antagônicos interesses envolvidos nos processos de insolvência empresarial.