O Brasil fez a opção de crescer sem poupar, tornando-se altamente dependente de poupança externa. Sem os recursos que vêm do exterior, o país não tem como financiar seu desenvolvimento. Para evitar as crises que, no passado, interromperam o crescimento e abortaram o florescimento do “país do futuro”, terá que atender a certas condições para convencer o investidor estrangeiro a financiar, seguidamente, elevados déficits nas contas externas.
É possível conviver por muito tempo com déficits em conta corrente em torno de 4,5% do PIB? A Austrália provou que sim. Até os anos 70, aquele país acumulava déficits anuais de 2,5% do PIB. Nos anos 80, transitou dali para 4,5% do PIB, em média, o que perdura até os dias de hoje. O país tem um passivo externo líquido de 65% do PIB, quase o dobro do brasileiro (de 36% do PIB). Passou bem pelas crises financeiras dos anos 90 e de forma exemplar da mais recente delas – a de 2007/2008.
No Brasil, déficits bem menores provocam enorme frisson. Em 2008, o país fechou com um saldo negativo em conta corrente de 1,72% do PIB. No ano passado, o resultado melhorou um pouco – déficit de 1,55% do PIB -, mas, com a aceleração do crescimento da economia, a tendência é de deterioração. Como não há, no horizonte político, sinal de que o modelo econômico brasileiro será alterado de forma fundamental, é importante debater como os sucessivos e crescentes déficits serão financiados.
O economista Luiz Guilherme Schymura, diretor do Instituto Brasileiro de Economia da FGV (Ibre), estudou a experiência australiana. Assim como no Brasil atual, na Austrália o debate pegou fogo quando o país entrou na rota dos déficits elevados. “Em 1986, quando a Austrália foi rebaixada pelas agências de rating, o então secretário do Tesouro, Paul Keating, chegou a levantar a hipótese de que o país estaria se transformando numa ‘república de bananas’, com o mesmo tipo de irresponsabilidade macroeconômica que tantas crises semeou na América Latina”, conta Schymura.
Foi naquele momento que, não sem uma dose de ironia, surgiu uma visão alternativa do problema – “a consenting adults view” (a visão dos adultos que consentem), formulada pelo economista John Pitchford. Em linhas gerais, Pitchford elaborou a ideia de que o déficit em transações correntes é o resultado líquido de escolhas feitas pelos agentes econômicos. Transpondo o raciocínio para o Brasil, poder-se-ia dizer que não é o câmbio que derrete a economia, mas a economia que derrete o câmbio.
“Qualquer tentativa da política econômica de alterar o resultado da conta corrente apresentará custos para a sociedade. Assim, o problema não reside no déficit em transações correntes em si, mas nos mecanismos econômico-institucionais que o país deve dispor para poder operar na via do financiamento externo”, argumenta Schymura, que escreverá sobre o tema na próxima edição da Carta do Ibre.
O que torna a economia australiana resistente a choques? Na avaliação do diretor do Ibre, a resposta está num arranjo institucional que torna o país seguro para o investidor que o financia. O primeiro aspecto diz respeito ao fato de o banco central australiano, a exemplo do brasileiro, ter um único objetivo: o controle da inflação. Um segundo aspecto relevante é que o dólar australiano é uma moeda internacionalizada – é livremente transacionada contra outras moedas e utilizada em contratos, inclusive, depósitos bancários e títulos. “Não-residentes podem emitir e carregar títulos em dólares australianos, e há um mercado de negociação da moeda totalmente off-shore, isto é, entre não-residentes. Essas operações off-shore são responsáveis por 60% de toda a negociação com o dólar australiano. Em relação a títulos denominados na moeda, o equivalente a US$ 107 bilhões, de um total de US$ 356 bilhões, era transacionado off-shore no final de 2005”, diz ele.
A importância desse grande mercado interno e externo em dólar australiano é que ele facilita o financiamento do déficit em conta corrente pelo canal da renda fixa. Na Austrália, os bancos tomam recursos no exterior para financiar o mercado de hipotecas, o que, à primeira vista, parece arriscado. Ocorre que essas mesmas instituições fazem hedge (proteção) para se defender de variações cambiais. “Com um mercado de dólares australianos grande, líquido e internacionalizado, é muito barato fazer hedge nos mercados futuros e de opções, especialmente porque a diferença entre juro interno e externo é praticamente inexistente.”
O Brasil ambiciona ter um mercado de dívida desenvolvido. O problema é que, enquanto houver um grande diferencial entre juro interno e externo, o preço do hedge será alto, o que torna arriscado um financiamento expressivo do déficit em conta corrente pelo canal da renda fixa, como faz a Austrália. “O exemplo australiano, na verdade, indica que a política econômica deve evitar ao máximo a dívida em moeda estrangeira sem proteção.”
No caso brasileiro, a poupança externa já é majoritariamente fornecida por investimento direto e em ações – em dezembro, essas aplicações somavam US$ 751 bilhões (140% do passivo externo líquido). O hedge, nesse canal, está embutido – quando houver desvalorização do real, os preços vão se tornar desfavoráveis a uma fuga de capitais; se o país vai bem, paga mais dividendos ao investidor; se há uma crise, não há dividendos a pagar, um mecanismo autocontrolador. No canal de renda fixa, a exposição brasileira hoje é modesta (cerca de US$ 76,4 bilhões), face ao tamanho das reservas cambiais (US$ 241 bilhões).
A Austrália ensina que, para manter seu modelo, é preciso ter equilíbrio fiscal, algo que o Brasil vem fazendo desde 1999, embora ainda não tenha eliminado o déficit público. Outra lição é manter o regime de câmbio flutuante, que, observa Schymura, “além de corrigir automaticamente desequilíbrios em transações correntes, desestimula passivos em moeda externa sem hedge”.
O diretor do Ibre acrescentaria duas recomendações. A primeira é retomar a agenda de reformas microeconômicas para ajudar a desenvolver o mercado de capitais doméstico. A segunda é fortalecer a regulação bancária, para evitar descasamento de moedas entre ativos e passivos dos bancos.