Passados quatro anos de vigência da nova Lei de Falências, alguns de seus pontos ainda necessitam de uma interpretação da Justiça para que possam garantir segurança jurídica – em especial nos casos de recuperação judicial. Um deles, apesar de contar com recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ainda está longe de ser esclarecido de forma definitiva: o que fazer com as ações de ex-trabalhadores de empresas em recuperação judicial que reivindicam seus direitos na Justiça trabalhista. A dúvida surge porque, historicamente, se a empresa acionada não paga a dívida trabalhista e não possui bens para garanti-la, a Justiça do trabalho redireciona a cobrança a terceiros – que podem ser sócios, ex-sócios ou empresas que fazem parte do mesmo grupo econômico. O que ainda não foi discutido nas instâncias superiores é se isso pode ocorrer quando a empresa devedora está em recuperação judicial.
Os conflitos decorrem da divergência de entendimento entre os juízes trabalhistas e os juízes das varas de falência em relação à aplicação da nova Lei de Falências – a Lei nº 11.101, de 2005. Neste ano, o Supremo decidiu que a Justiça do trabalho não pode definir a existência de sucessão trabalhista – quando uma empresa herda a dívida de outra – na venda das chamadas unidades produtivas de uma empresa em recuperação a outra companhia. A discussão ocorreu no julgamento de um recurso de um ex-funcionário da Varig contra a Gol – que adquiriu a Varig em 2007 – no qual pedia o reconhecimento da sucessão das dívidas. O Supremo não entrou no mérito do que seria uma unidade produtiva, mas definiu que, após reconhecido o direito do trabalhador na Justiça trabalhista, a execução dessa dívida deve ser remetida à vara de falências, responsável por administrar o pagamento de todos os débitos da empresa em recuperação, conforme o plano aprovado pelos seus credores. Cabe também à vara de falências definir se há ou não sucessão trabalhista no caso.
Já a segunda seção do STJ definiu que a execução trabalhista de uma ação em que já foi reconhecida a responsabilidade do sócio da empresa em recuperação pelo débito trabalhista pode ser feita na vara trabalhista. Nesse julgamento, a corte entendeu que a chamada desconsideração da personalidade jurídica para atingir os bens do sócio da empresa poderia ocorrer porque o plano de recuperação da empresa ainda não havia sido aprovado pelos credores.
Apesar desses dois posicionamentos, ainda está indefinida a situação de empresas cujo capital social têm apenas uma participação acionária da companhia em recuperação. A situação é vivida de forma pioneira pela Varig, cujo complexo processo de recuperação judicial se desenrola na 1ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro desde 2005. Nesse ano, a Fundação Rubem Berta, antiga dona do grupo, possuía participações majoritárias ou minoritárias em 26 empresas de diversos setores além do aéreo – como hoteleiro, editorial e de tecnologia, dentre outros. No entanto, apenas três de suas empresas – a Varig, a Rio-Sul e a Nordeste – fazem parte da recuperação judicial da companhia aérea. As demais seguiram seus próprios rumos e agora enfrentam na Justiça ações de execução de valores devidos a ex-trabalhadores da Varig.
A Amadeus é uma das empresas a passar por esse problema. A multinacional de origem espanhola, especializada no desenvolvimento de sistemas eletrônicos de reserva de passagens aéreas, abriu sua filial brasileira em 1999 para atuar em parceria com a Varig, que detinha, à época, 51% de suas ações. De acordo com Hermano Villemor, diretor da Amadeus, em meados de 2003 o percentual da Varig passou a ser de apenas 8,99% do capital social da Amadeus. Isso demonstra, segundo ele, que dois anos antes de a Varig entrar em recuperação judicial a Amadeus já tinha uma vida independente da companhia aérea, o que deveria ser suficiente para que a empresa não fosse responsabilizada pela Justiça do trabalho por débitos de sua antiga acionista majoritária. No entanto, a Amadeus enfrenta hoje cerca de 180 ações trabalhistas dessa natureza – e algumas delas, já em fase de execução, resultaram no bloqueio de R$ 800 mil da conta bancária da empresa. De acordo com Villemor, a Amadeus, que opera no Brasil com uma estrutura de 120 funcionários, corre o risco de quebrar. “Imagine se formos responsabilizados por débitos com cerca de cinco mil ex-funcionários da Varig”, questiona.
A Pluna, companhia uruguaia de aviação, é outra empresa atingida. A Varig chegou a deter 51% de suas ações, mas, devido à crise da brasileira, em 2005 o governo uruguaio retomou o controle da empresa e vendeu as ações ao consórcio Leadgate Investment Corp., que hoje detém 75% do capital da empresa. Apesar disso, a Pluna enfrenta mais de 300 ações trabalhistas movidas por antigos funcionários da Varig, a maioria tramitando ainda na primeira instância. De acordo com o advogado Pedro Paulo Gouvêa de Magalhães, que defende a Pluna, as ações trabalhistas envolvem funcionários de níveis salariais diversos, que reivindicam verbas referentes a recisões contratuais e reajustes salariais. Segundo ele, a Varig era mera acionista da empresa, e o direcionamento da cobrança das dívidas da Varig para ela põe em risco a segurança de empresas que abrem seu capital. “A Justiça do trabalho tem o hábito de ampliar o conceito de grupo de trabalho”, diz Magalhães.
Para o advogado José Alexandre Meyer, que representa a Varig no processo de recuperação judicial, a quitação do débito da companhia aérea por outras empresas até poderia ter um efeito positivo para a empresa, mas seria aplicar um entendimento da Justiça do trabalho que considera “distorcido”.