A noção de litigiosidade predatória congrega duas ideias principais: a própria ideia de litigiosidade, assim entendida como o conflito efetivamente levado para análise nas diferentes instâncias do Poder Judiciário, por meio de ações ou recursos judiciais e a conduta de predar, ou seja, consumir os recursos do Poder Judiciário ou de defesa da parte contrária, impactando de forma considerável a sua viabilidade.
A noção de litigiosidade predatória, como mencionado no artigo anterior, cresceu ligada ao ajuizamento de ações em massa, porque normalmente a conduta passa a ter sentido (econômico ou estratégico) a partir de uma certa escala (embora não seja necessário que ela já tenha sido atingida para sua caracterização) e seja possível também sua realização por meio de outras condutas processuais (inclusive no polo passivo).
É importante mencionar, entretanto, o número de ações, por si só, não é elemento suficiente para caracterizar a litigiosidade predatória (se assim fosse, aliás, toda demanda repetitiva assim poderia ser caracterizada). Ademais, também não se amoldam perfeitamente ao conceito a litigância de má-fé e o ato atentatório à dignidade, que se configuram dentro da mesma relação processual (embora caracterizem o abuso e sejam igualmente passíveis de repreensão).
A noção, pelo método de reiteração em diversos processos, adquire uma dimensão extraprocessual. Aliás, por vezes é a própria reiteração em um elevado número de processos que despe de credibilidade a pretensão e dá o sentido abusivo à conduta. Em outros termos, em alguns casos não é possível entender o problema a partir da árvore, senão apenas da visão da floresta.
Estabelecido que a litigiosidade predatória seria sobretudo um método para o uso abusivo (e reiterado) do Poder Judiciário e as formas de abuso estejam limitadas apenas pela imaginação, vale a pena citar alguns principais casos documentados, para facilitar a compreensão do fenômeno , sem descurar, desde logo, que uma mesma prática predatória pode envolver mais de um tipo de conduta dentre as indicadas:
(1) Ações ou condutas fraudulentas: é a litigiosidade que busca convalidar uma fraude. Dentre os casos documentados estão as ações de declaração de inexigibilidade do débito e condenação em dano moral pela \”negativação indevida\” que se vale de extratos de órgãos de proteção ao crédito adulterados, excluindo outras inscrições, na tentativa de afastar a aplicação da Súmula 385 do STJ, bem como ações ajuizadas a partir de procuração adulterada ou copiada de outro processo, sem o conhecimento ou interesse do autor;
(2) Ações ou condutas temerárias: é a litigiosidade que se baseia em conduta afoita, que tem consciência do injusto, de que não tem razão (aproxima-se da ideia de \”frivolous litigation\” da doutrina norte-americana, como ação ajuizada sem a diligência esperada ou sem base legal). Dentre os casos indicados estão as ações de inexigibilidade propostas com base em alegação de que a parte \”não se recorda\” da dívida ou do empréstimo recebido, mesmo tendo plena consciência da sua validade e ações revisionais contrárias a teses firmadas em precedentes qualificados sem a invocação de distinção ou superação, dentro da lógica do \”se colar, colou\”;
(3) Ações ou condutas frívolas: litigiosidade desnecessária ou que discute de maneira propositadamente fragmentada questões de baixíssimo valor econômico ou social, como forma de gerar ou multiplicar ganhos. Dentre os exemplos de demandas frívolas, conforme a ideia aqui exposta, estão as ações preparatórias, como exibição de documentos, sem prévio pedido administrativo e fragmentação de pedidos, inclusive relacionados a um mesmo contexto fático, apostando na desorganização da parte contrária e/ou fixação de honorários em cada processo.
(4) Ações ou condutas procrastinatórias: é a litigiosidade utilizada para postergar o resultado previsível e esperado de uma consequência jurídica, de modo a reduzir sua eficácia. Dentre os casos estão ações que visam a suspensão de inscrição de nome de devedores nos cadastros de inadimplentes enquanto se discute o mérito, mesmo em casos que não haveria base real para a contestação da dívida, bem como ações revisionais de contratos de financiamento com pretensão de suspender a retomada de garantias mesmo contrária a teses pacificadas e sem o pagamento do incontroverso.
(5) Sham litigation: o termo sham vem da língua inglesa e significa aquilo que é falso; a expressão, entretanto, costuma ser utilizada no contexto específico do Direito Concorrencial, manifestado pelo uso abusivo do direito de petição, meio de prejudicar ou inviabilizar o concorrente. Dentre os exemplos, as ações como meio de interferir direta ou indiretamente em suas relações comerciais ou simplesmente impor os custos da litigância aos seus competidores. Raciocínio semelhante pode ser empregado no âmbito político, por meio de ações (sobretudo ações populares) cujo objetivo é desgastar a imagem do adversário.
(6) Assédio processual: uso de diversos processos judiciais contra pessoa ou de um grupo de pessoas para prejudicar ou subjugar um adversário (aproximando-se da ideia de vexatious litigation da doutrina norte-americana) ou inibir o livre exercício de um direito, sendo uma das hipóteses o exercício da liberdade de expressão, conforme mencionado na Recomendação nº 127 do Conselho Nacional de Justiça. Em outro contexto, a expressão foi mencionada no Recurso Especial 1.817.845, sob a relatoria, em divergência, da ministra Nancy Andrighi, para descrever o ajuizamento de diversas ações para obstar o exercício de um direito reconhecido em uma outra ação transitada em julgado.
(7) Spam processual: litigiosidade intraprocessual, relacionada ao manejo em massa de petições sem prévio exame dos autos (como manifestações ou pedidos temerários, portanto), estruturadas de tal forma a transferir os custos da análise do caso (notadamente o tempo) para a parte contrária ou para o Poder Judiciário, gerando uma série de incidentes desnecessários. Dentre os casos estão pedidos manifestamente condicionais ou manifestamente contrários ao histórico processual.
Tais condutas, deve-se salientar, podem ser praticadas tanto por autores quanto réus, consumidores ou fornecedores, não havendo distinção quanto a tais aspectos.
Vale ressaltar novamente, esses são apenas alguns tipos de condutas documentadas, o que, evidentemente, não dispensa a análise acurada do contexto para que seja possível verificar se, de fato, correspondem a uma conduta predatória. A maioria das análises que vem sendo realizadas, como aquelas destacadas no artigo anterior, centram-se não apenas no exame acurado dos processos, mas também das movimentações judiciárias, o que vem sendo aprimorado por ferramentas de Business Inteligence.
Por fim, no próximo — e último — artigo desta série será discutida a influência do modelo econômico da litigância, esclarecendo como o benefício da gratuidade, tal como estruturado no Brasil, acaba contribuindo para viabilizar algumas condutas predatórias que, de outra forma, seriam inviáveis.