Desde a publicação da Resolução da Comissão de Valores Mobiliários nº 175, de 23 de dezembro de 2022 (Resolução 175), que instituiu o novo marco regulatório dos fundos de investimento no Brasil, as áreas técnicas da CVM têm envidado esforços contínuos para divulgar interpretações e esclarecimentos acerca de seus dispositivos, o que se dá, notadamente, por meio de ofícios-circulares.
Dentre os diversos temas regulados, destaca-se a redefinição da responsabilidade dos gestores e administradores de fundos de investimento, uma das alterações mais significativas introduzidas pela resolução. Com ela, o gestor passou a ocupar, ao lado do administrador, a posição de prestador de serviço essencial do fundo e, por isso, dividiram-se entre ambos as funções que até então eram de responsabilidade do administrador.
Não por acaso, apesar dos esforços da CVM em promover discussões com o mercado e esclarecer a redação dos dispositivos da Resolução 175 junto ao mercado antes da publicação da norma, diversos foram os questionamentos da indústria de fundos sobre a aplicação e os impactos da nova estrutura de responsabilidade, mesmo após sua vigência.
Consequentemente, ainda hoje são recorrentes as publicações de ofícios-circulares pelas superintendências da CVM para tratar de dúvidas e dificuldades enfrentadas no dia a dia de gestores e administradores em meio às recentes mudanças regulatórias.
A vez dos Fundos de Investimento Imobiliário (FII) receberem especial atenção da CVM no tema da responsabilidade de prestadores de serviços essenciais ocorreu em 30 de outubro de 2024, por meio do Ofício-Circular nº 6/2024/CVM/SSE, pela Superintendência de Securitização e Agronegócio (SSE).
O Ofício-Circular divulgou entendimentos sobre, dentre outros temas: a taxa de gestão dos FII, a contratação da consultoria e da empresa especializada pelo FII e a responsabilidade pelo enquadramento dos FII.
Todos os temas mencionados estão disciplinados no Anexo Normativo III à Resolução CVM 175 — que dispõe sobre as regras específicas para FII —, e, dada sua relevância para os prestadores de serviços essenciais de tais veículos, serão detalhados a seguir.
Nos termos do artigo 5º do Anexo Normativo III à Resolução CVM 175, caso a política de investimentos do FII não permita a aplicação de parcela superior a 5% do patrimônio líquido em valores mobiliários, torna-se facultativa a figura do gestor, podendo o administrador exercer tanto a administração fiduciária quanto a gestão da carteira.
Nesse sentido, esclarece o Ofício-Circular nº 6/2024/CVM/SSE que, em um fundo que simultaneamente se enquadra na hipótese do referido artigo 5º e, mesmo assim, possui um gestor como prestador de serviços essenciais (ainda que facultativo, a princípio), a taxa de gestão poderá ser considerada um encargo a ser pago pelo próprio fundo, conforme já prevê a parte geral da norma.
A consultoria especializada e a empresa especializada (previsões dos incisos II e III do artigo 27 do Anexo Normativo III à Resolução CVM 175) são serviços que, apesar de facultativos, são amplamente utilizados em estruturas de FII. A consultoria oferece suporte na análise, seleção, acompanhamento e avaliação de ativos integrantes ou que possam vir a integrar a carteira do fundo, enquanto a empresa especializada torna-se responsável pela administração das locações ou arrendamentos de empreendimentos integrantes do patrimônio da classe de cotas do fundo.
Nos termos da Resolução CVM 175, a contração dos serviços de consultoria e empresa especializada cabe ao administrador fiduciário do FII e, neste sentido, o ofício-circular reforça os dizeres da norma ao compartilhar o entendimento de que “não há possibilidade ou justificativa para que essa contratação seja realizada pelo gestor”.
A justificativa, segundo a SSE, seria a de que o gestor de FII só pode ter atribuições sobre os valores mobiliários investidos, e não sobre os imóveis — citando, para isso, o artigo 26, § 2º, do Anexo Normativo III à Resolução CVM 175.
O terceiro ponto abordado pelo Ofício-Circular trata da responsabilidade pelo enquadramento dos FII. Nele, a SSE apresenta a suposta contradição entre dois dispositivos da norma: o artigo 89 da Parte Geral da Resolução CVM 175 e o artigo 40, § 4º, do Anexo Normativo III à Resolução CVM 175.
O primeiro deles, da Parte Geral da resolução, estabelece que é o gestor o responsável pela observância dos limites de composição e concentração da carteira dos fundos, ou seja, pelo seu enquadramento.
O artigo 40, § 4º, do Anexo Normativo III, por outro lado, dispõe sobre deveres do administrador — e não do gestor — quanto à observância das regras de enquadramento e desenquadramento da carteira de valores mobiliários dos FII.
Apesar do aparente conflito entre ambos os dispositivos, a SSE esclarece que os deveres atribuídos ao administrador no artigo 40, § 4º, referem-se aos casos em que o FII se enquadra na hipótese do art. 5º do mesmo Anexo Normativo III, já mencionada anteriormente. Ou seja, o administrador só será responsável pelo enquadramento e desenquadramento nos casos em que o FII não conte com um gestor como prestador de serviços essenciais.
É importante notar que o entendimento da SSE sobre este último tema reforça um dos pilares centrais da Resolução CVM 175: o reconhecimento da relevância dos gestores de recursos, tornando clara a divisão entre os papéis do gestor e do administrador de fundos de investimento. A redação do novo marco regulatório, especialmente nos trechos que versam sobre a responsabilidade de administradores e gestores, está orientada por essa premissa .
Essa mesma justificativa foi, inclusive, utilizada pela Superintendência de Supervisão de Investidores Institucionais (SIN) no âmbito do Ofício-Circular nº 2/2025/CVM/SIN, de 23 de janeiro de 2025, em um questionamento — dessa vez relacionado a Fundos de Investimento em Participações (FIP), e não a FII — acerca da atuação do administrador fiduciário.
No caso, o enunciado perguntava se, à luz das disposições da Resolução CVM 175, caberia ao administrador fiduciário recusar ou vedar operações realizadas pelo gestor de recursos em nome dos FIP. A Superintendência foi assertiva: não constitui dever ou responsabilidade do administrador controlar a adequação e/ou o enquadramento das operações realizadas pelos gestores (seja essa adequação vinculada à norma vigente, à política de investimentos ou ao regulamento).
No Ofício-Circular 2/2025/CVM/SIN, a SIN aproveitou para reforçar que “a responsabilidade solidária entre os prestadores de serviços essenciais deixa de ser a regra e passa a ser a exceção”.
Cumpre ressaltar, sobre este ponto da resposta, que inexiste qualquer tipo de responsabilidade solidária administrativa e — desde a Lei de Liberdade Econômica — civil entre o gestor e o administrador de fundos no cumprimento de seus deveres.
Dessa forma, as atribuições compartilhadas entre o gestor e o administrador, na Resolução CVM 175, são disciplinadas com grau de detalhamento suficiente para diferenciar cada qual na sua esfera de atuação, ou, ao menos, oferecer condições para que o regulamento do fundo e os contratos com prestadores de serviços disciplinem, com clareza, o escopo das atividades e os limites das responsabilidades de cada um .
Portanto, seja no caso de fundos de investimento imobiliário, em participações, ou quaisquer outras categorias de fundos disciplinadas pela Resolução CVM 175, o movimento regulatório é de equiparação da relevância entre gestores de recursos e administradores fiduciários, devendo a norma, salvo exceções pontuais, ser interpretada com base na clara separação de suas responsabilidades e atribuições.
Fonte: Conjur