As normas jurídicas e as proposições que as descrevem são expressas igualmente na linguagem e essa característica pode conduzir à confusão de tomá-los como uma coisa só tanto a ciência do direito, quanto o Direito. A consequência disso também se reflete na demarcação entre as funções da ciência jurídica e da autoridade jurídica. O que faz Kelsen, então, é estabelecer uma distinção essencial entre Direito e ciência jurídica a partir da diferença entre norma e proposição jurídica, que inclui outros conceitos, como prescrição e descrição, verdade/falsidade e validez/invalidez, causalidade e imputação.
Embora distintos, não se pode dizer que norma e proposição jurídica não estão em relação, afinal de contas o Direito, segundo Kelsen, é o objeto da ciência jurídica como uma apreensão teorética ou gnoseológica do objeto. O que paira como pano de fundo aqui é que tipo de cidadania lógica ou aplicação deve ser associada à questão; em que tipo de parâmetro lógico está calcada a conexão, nas expressões da ciência jurídica, entre proposição e norma, pois as normas jurídicas são, de acordo com Kelsen, expressas em proposições. Se escande, de um lado, a imputação como traço distintivo do Direito e, do outro, as relações causais que são próprias da ciência da natureza. De todo modo, proposições jurídicas são bipolares. Veremos mais adiante.
Ora, em que consiste a apreensão do Direito como objeto pela ciência jurídica? Ao fazer uma analogia com a teoria do conhecimento de Kant, a ciência jurídica seria, para Kelsen, uma espécie de princípio ordenador — por isso se fala em ordem jurídica — da pluralidade das normas jurídicas, do mesmo modo em que o caos das sensações é ordenado, pela ciência, na estrutura de um cosmo.
Uma norma que oriente uma consequência — uma punição ou castigo, por exemplo — mediante um ato ilícito não se adequada a uma relação de causa e efeito, na medida em que ela a) não descreve um objeto ou fato e b) a consequência do ato ilícito pode muito bem não realizar-se efetivamente. Assim, a norma jurídica possui uma margem de manobra que extrapola o esquema da bipolaridade. Se a norma fosse expressão de causa e efeito, então a última situação seria uma flagrante contradição com a própria realidade, pois o consequente tinha que ser, necessariamente, um efeito do ato ilícito, coisa que pode não acontecer.
Neste sentido, normas jurídicas não são constatações da realidade objetiva, mas imperativos e, como tais, não enquadráveis em enunciados que podem ser verdadeiros ou falsos, podendo ser apenas válidas ou inválidas. Dessa forma, as normas são prescrições, atribuem direitos e deveres aos sujeitos jurídicos. Considerando que o Direito se constitui como objeto da ciência jurídica e, como vimos, não desempenha papel descritivo mas prescritivo, as proposições jurídicas, por outro lado, são definidas como descrições de normas jurídicas e estabelece a relação entre fatos — um delito, uma transgressão da lei, por exemplo — determinada pela própria norma. É através da ciência jurídica e de suas proposições que o Direito e as normas jurídicas são dispostos como objetos a serem conhecidos. As normas jurídicas gozam de autonomia, enquanto as proposições jurídicas trazem em seu conteúdo aquelas.
Se as proposições jurídicas, de acordo com Kelsen, podem, diferentemente das normas, ser bipolares, cujo valor de verdade é extraído da sua subsunção ou não à norma, pergunta-se então como se refletem nas proposições do Direito os princípios lógicos, como não-contradição e as regras da concludência, uma vez que tais princípios são aplicáveis a enunciados que expressão relação de causa e efeito. Nessa questão, Kelsen faz um paralelo com a ciência causal ao dizer que
Tal-qualmente uma lei natural, também uma proposição jurídica liga entre si dois elementos. Porém, a ligação que se exprime na proposição jurídica tem um significado completamente diferente daquela que a lei natural descreve, ou seja, a da causalidade.
A forma de uma proposição jurídica pode ser assim determinada: \”quando A é, B deve ser\” e não \”quando A é, B é\”, como é expressa uma lei natural que leva em conta a causalidade. O \”dever-ser\” naquela proposição é exprimida como cópula pela norma jurídica e, como tal, não implica que o consequente sempre ocorra efetivamente, como na relação causal, mas que, diante da norma, o consequente deve realizar-se. É, neste sentido, que trata-se de um juízo hipotético. A natureza descritiva aqui consiste em a cópula \”dever-ser\” estabelecer a conexão entre dois fatos, como ilícito e a consequência do ilícito. Em sentido mais estrito, tais asserções descrevem que algo deverá acontecer. Por outro lado, ser verídica ou inverídica uma proposição jurídica não depende de sua \”comparação\” com o mundo empírico, mas quando submetido a algo mais autônomo; é verdadeira ou falsa sob o escrutínio da norma, isto é, se a proposição está em conformidade com a norma.
Assim posto, na teoria do Direito de Kelsen, a ideia de causalidade é, por assim dizer, substituída pela ideia de imputação. Se a cópula — dever-ser — está associada à prescrição, um dos motivos pelos quais as descrições não pode ser tradicionalmente verifuncionais no sentido tradicional, então a proposição jurídica é infensa a qualquer influência de juízos de valor ou qualquer tipo de ideologia. E como se trata da conexão de fatos, o pressuposto e o consequente, o dever-ser aqui não pode ser tomado em sentido prescritivo, mas descritivo. Caso contrário, uma proposição jurídica poderia ser tomada como uma norma jurídica. O resultado disso seria uma contradição, uma vez que, no final das contas, seria uma prescrição da prescrição.
A despeito de Kelsen pretender que a ciência normativa tome um sistema jurídico em forma de regra, mas em sentido descritivo, Hart diz que o que se poderia esperar não seria uma descrição de \”uma série de regras ou \’proposições de dever\’, mas uma série de proposições explicando o que as regras significam\”. O que Hart parece chamar atenção é a incompatibilidade entre uma proposição de dever ser ser descritiva e, ao mesmo tempo, uma forma de regra.
Para desenvolver a questão, introduz a distinção entre uso e menção. Esta chave de leitura pode ser assim modulada: que as proposições jurídicas são explicações — e não simples descrições — do que os termos das normas significam, isto é, são menções das palavras das normas, como se \”cada elemento do primeiro conjunto tivesse seu correlato no segundo\”. Um exemplo de menção é a expressão do tipo \”X é o inventor do termo \’sétima da arte\’\”, no qual \”sétima arte\” é apenas mencionada, não guardando nenhuma referência à invenção do cinema propriamente dito. Em termos mais práticos, Hart esperaria que forma proposição da Ciência Normativa seria do tipo \”A Seção 2 da Lei do Homicídio15 de 1957 que estabelece…\”. Por conseguinte, aplicando o esquema de distinção entre uso e menção, a proposição \”\’A Seção 2ª da Lei de Homicídio de 1957 significa o mesmo que a regra \’Se B… então A… deve ser\’\”.
Assim, se Hart tiver razão, essa objeção conduz a uma metalinguagem de outra natureza ou a algum tipo de discurso metajurídico. As proposições jurídicas em Kelsen não seriam, então, descrições diretas das normas jurídicas, mas apenas paráfrases e menções. Além disso, se uma norma jurídica, de acordo com Kelsen, não pode ser bipolar, parece ocorrer aqui uma situação um tanto inusitada, na medida em que as proposições jurídicas como paráfrases e menções poderiam ser, ainda assim, diferente daquela, verdadeiras ou falsas, como propões Kelsen.
Mas Hart parece se dissuadir da sua objeção ao utilizar um exemplo em que um intérprete inglês repassa uma ordem de um comandante alemão, tornando a aplicação da distinção entre uso e menção inócua ou, pelo menos, pouco eficaz para a análise. A situação é a seguinte: um comandante alemão, com medo do fogo, ordena que se apanhe uma caixa, feixe de palha e papel. O intérprete repete o equivalente em sua língua e acrescenta algo a mais, que peguem todo material inflamável. Outra situação é a ordem, repassada pelo intérprete, para que todos fiquem de pé. Segundo Hart, se o intérprete for perguntado do porquê de ter feito tais ordens, terá que incluir explicações. Com isso, Hart diz: \”Mas (para usar a linguagem de Kelsen) o intérprete e o imitador conseguiram representar seus originais sem mencioná-los, apesar, é claro, de não fazer ou ser exatamente o mesmo tipo de coisa que as originais\”. Por fim, Hart diz que Kelsen foi sábio em não aceitar a sua alternativa.
A despeito da criação de uma metalinguagem em Kelsen, segundo a qual seria a ciência jurídica faria descrição da linguagem-objeto em sentido prescritivo, podemos, agora, introduzir uma visão wittgensteiniana a respeito da linguagem e a impossibilidade de haver, pelo menos no Tractatus, algum tipo de metalinguagem. Essa impossibilidade está associada à conhecida doutrina do dizer e mostrar. Antes, porém, faz-se necessário apresentar algumas considerações sobre a linguagem no Tractatus.
O livro reputa à lógica as condições que determinam os limites do que pode ser dito. A linguagem natural, nesse sentido, não padece de nenhuma anomalia, para a qual a lógica serviria como uma espécie corretivo. O que deixa-se dizer, é dito de maneira logicamente perfeita e \”sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar\”. Não obstante, é verdade também que esse limite não é um lugar circunscrito, como aquelas linhas da cartografia que representam a fronteira entre dois países — nessa imagem, poder-se-ia indicar o limite territorial pela perspectiva do seu vizinho, portanto pelo lado de fora; em Wittgenstein, o limite da linguagem é determinado por dentro, no próprio uso efetivo, nunca além do seu domínio, onde paira, aliás, o campo do inefável.
A linguagem corrente, com suas profícuas confusões semânticas, parece testemunhar o contrário de um ordenamento lógico reivindicado por Wittgenstein, na medida em que \”com muita frequência uma mesma palavra designe de maneiras diferentes\” ou porque \”duas palavras que designam de maneiras diferentes sejam empregadas, na proposição, superficialmente do mesmo modo\”. É o exemplo clássico no Tractatus da proposição \”Rosa é rosa\”. Equívocos como estes — que nem os esforços de Frege e Russell, segundo Wittgenstein, conseguiram solucionar — podem ser evitados a partir da sintaxe lógica como notação, que explica a assimetria entre símbolo e sinal ao introduzir a ideia de uso. Aplicado à proposição \”Rosa é rosa\”, a notação esclarece que a \”a primeira é um nome de uma pessoa, a última é um adjetivo\”, designam coisas diferentes, portanto são também símbolos diferentes, embora sejam sinais iguais. Esse tipo de esclarecimento é um desígnio próprio da filosofia, caracterizada no Tractatus como atividade, que, como se pode ver, não descrevera absolutamente nada, razão pela qual proposições filosóficas são classificadas como contrassensos e por isso não pode ser-lhes atribuídas valor de verdade.
Não obstante, o mundo que se deixa dizer, no Tractatus, não é um mundo empírico. À primeira vista, porém, pode causar espécie que as considerações ontológicas iniciais do livro. No entanto, longe de promover a pregnância de um mundo preenchido de efetividades, Wittgenstein discorre inicialmente como se estrutura logicamente aquilo que se deixa dizer. Neste sentido, a exposição acerca da estrutura do mundo não está desassociado da ideia de notação e estrutura das proposições: Wittgenstein dirá que a forma proposicional é \”as coisas estão assim\” e, mais adiante, identifica a essência da forma proposição com a essência do mundo. Essa discussão regride justamente às partes iniciais do Tractatus
Que o mundo se resolva em fatos significa dizer que o mundo não é conjunto de objetos, mas a sua totalidade junto com suas configurações. Fatos e estados de coisas são configurações variáveis de elementos fixos; a postulação do objeto como substância simples e fixa é condição para uma linguagem capaz de traçar figuração do mundo sem depender de outra figuração. Em razão disso, o objeto é indecomponível e, isoladamente, inefável.
Em contrapartida, o que torna a linguagem significativa possível não é a combinação aleatória de símbolos, mas a sua articulação segundo emprego lógico-sintático, cuja coordenação é idêntica a dos objetos em seus estados de coisas. Todavia, o que a linguagem não pode figurar é justamente aquilo que é condição a priori de toda a figuração. O que está implícito aqui, considerando a isomorfia entre a linguagem e a essência do mundo, é que a verdade ou falsidade de uma proposição, em Wittgenstein, depende exclusivamente de sua comparação com a realidade. A ideia de uma de metalinguagem no Tractatus concorreria na possibilidade descrever as \”regras\” que tornam possível a a descrição. Se considerássemos que a forma lógica fosse exprimível de forma proposicional, a verdade ou falsidade de uma figuração dependeria da verdade ou falsidade de outra proposição, e não do cotejo com a realidade, num círculo infinito. O mundo não se deixaria dizer porque sequer teria sido alcançado. A isomorfia colapsaria.
Assim, a forma lógica do objeto, em Wittgenstein, só pode ser mostrada a partir do que é dito; a forma lógica se espelha na proposição.
Em contrapartida, a notação torna desnecessária a menção de nomes com o intuito de apontar, numa operação exterior à proposição, os seus devidos significados. Esse tipo de ocorrência remeteria justamente ao ponto acima — que uma proposição dependeria de outra proposição. É neste sentido que o significado do nome é determinado no próprio emprego dos nomes na proposição. Fora desse contexto o nome é mera abstração sintática. A distribuição semântica dos objetos é reservada à sintaxe lógica, ao fato de que cada nome, tal como os objetos, possuem uma multiplicidade combinatória com outros nomes, constituindo uma proposição articulada com sentido e suas partes dotadas significados
Uma aproximação entre Kelsen, Hart e Wittgenstein deve ser feita com devida cautela. No contexto do Tractatus, a surpresa de Hart em que uma regra do direito é tomada em sentido descritivo e, ao mesmo tempo, apresenta regra de direito, soaria estranho no contexto Tractatus — se, claro, se pudesse aproximar de algum modo o termo regra de direito em Kelsen com a ideia regra, no Tractatus, como condição da linguagem significativa. Neste caso, como vimos, em Wittgenstein, regras só podem ser mostrada, nunca descritas. Outra via de interpretação seria considerar a filosofia, no Tractatus, como uma atividade, cujo desígnio não é a formulação de proposições, mas o de torná-las mais claras. Neste caso, as proposições jurídicas, em Kelsen, seriam uma espécie de esclarecimento das normas. Mas aqui se esbarra em algo fundamental no pensamento de Kelsen: proposições jurídicas são bipolares, coisa que não se aplica às elucidações. Em segundo lugar, proposições jurídicas dermarcam o campo de atuação da ciência jurídica; seria tomar como uma coisa só a atividade da filosofia e a ciência jurídica. Assim, tudo parece confabular, a partir do olhar do Tractatus, que, em Kelsen, estamos diante de uma metalinguagem, mas, talvez, não à maneira suposta inicialmente pro Hart a partir da distinção entre menção e uso.