Aos 52 anos, Flávio Roberto de Souza está sozinho. A filha mais velha, de 25 anos, mora com ele, mas fica pouco em casa. Os outros três filhos pararam de visitá-lo. Às quintas-feiras, tem a companhia da faxineira, que vai uma vez por semana arrumar o apartamento de 100 metros quadrados na Barra da Tijuca. No condomínio, com imóveis avaliados em quase R$ 1 milhão, há um restaurante que entrega comida na porta. Peixe grelhado com salada verde é o pedido mais frequente. À noite, fica à caça de seriados gringos: Game of Thrones, Once Upon a Time, Girls. O mais novo vício é a série americana de suspense policial Grimm: assistiu a 45 episódios de uma vez só, depois que foi afastado do cargo de juiz titular da 3ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, no início de março, e do caso que lhe tirou do anonimato: o processo contra o ex-bilionário Eike Batista.
No último dia em que acordou para ter uma rotina normal de trabalho, o juiz dirigiu por 28 quilômetros até a sede do Tribunal de Justiça no Centro do Rio. O caminho, naquele 24 de fevereiro, era o de sempre, mas o carro, não. Ele estava ao volante do Porsche Cayenne Turbo branco do empresário, apreendido duas semanas antes por determinação do próprio juiz. Na chegada, às 10h30, já era aguardado por jornalistas e fotógrafos, avisados pelos advogados de Eike de que o magistrado seguia para o trabalho no Porsche blindado. O carro estava estacionado no condomínio do juiz, assim como a Range Rover do filho do empresário. Os veículos tinham sido apreendidos numa operação da Polícia Federal para garantir o pagamento de indenizações caso Eike Batista fosse condenado por crimes contra o mercado financeiro e iriam a leilão na semana seguinte.
A imagem do magistrado ao volante do carro de R$ 860 mil era inusitada não apenas por ser o motorista o juiz de um dos processos de maior repercussão no país nos últimos tempos. Mas porque, em sua vida privada, ele adotava uma postura que em nada condizia com o que estava fazendo, segundo um desembargador colega de Souza. Budista tibetano, Flávio de Souza faz de dois a três retiros espirituais por ano, prega uma vida simples e tem planos de se tornar monge. Medita pela manhã e às seis da tarde diante de um altar com budas coloridos, incenso e orquídeas brancas, num canto da sala, que em nada é luxuosa – a estante de livros está bagunçada e há caixas de remédios espalhadas pela mesa.
De justiceiro, Souza passou a aproveitador para a opinião pública. O magistrado argumentou que havia pedido autorização do Detran para que os carros do empresário pudessem ser usados pela Justiça Federal. E disse que levou os veículos para a sua garagem “para não deixá-los sujeito a danos no pátio do tribunal, sob chuva, sol e poeira”. O piano de cauda que decorava a sala de Eike Batista estava no apartamento de um vizinho do juiz. A repercussão foi imediata. Dois dias depois, a corregedora nacional, ministra Nancy Andrighi, determinou que a o magistrado fosse afastado do caso e que uma sindicância fosse aberta para apurar os fatos. Na decisão, ela disse que “não há nem pode haver” possibilidade de um juiz “manter em sua posse um patrimônio de particular”.
As declarações feitas pelos desembargadores a partir daquele momento deram ideia do clima que tomou conta do tribunal: “a situação é embaraçosa”, “sem cabimento”, “mancha a imagem do Poder Judiciário”, afirmaram alguns deles antes mesmo de virem à tona as suspeitas de que Souza teria cometido crimes de peculato, fraude processual, subtração de autos e lavagem de dinheiro. Dos R$ 116 mil apreendidos de Eike Batista, R$ 27 mil desapareceram. Outros R$ 600 mil recolhidos do traficante espanhol Oliver Ortiz de Zarate Martin, preso em 2013, sumiram. Segundo o Ministério Público Federal, o juiz confessou à corregedoria ter desviado US$ 150 mil e 108 mil dos cofres da 3ª Vara. Os procuradores chegaram a pedir a prisão preventiva do juiz – o que foi negado pela Justiça.
De uma hora para outra, Flávio Roberto de Souza passou a evitar a imprensa, que ele costumava atender prontamente desde que assumiu o caso do empresário, dando declarações que deixavam os próprios jornalistas surpresos. Ao Extra, ele chegou a dizer que ia “esmiuçar a alma de Eike. Pedaço por pedaço”. Em outras entrevistas, referiu-se ao empresário como “megalomaníaco”, por ter o sonho de se tornar o homem mais rico do mundo. A postura do magistrado fez os advogados do fundador do Grupo X se armarem. Desde o ano passado, eles vinham tentando tirar Souza do caso, com a alegação de que o juiz estava sendo parcial. Ameaçaram processá-lo, mas, diante dos últimos acontecimentos, voltaram atrás. “Até do cargo ele foi afastado. Isso já é uma punição”, diz o criminalista Ary Berger, que integra a defesa do empresário.
Na semana passada, o juiz quebrou o silêncio numa entrevista de quase duas horas, por telefone, em que só não quis comentar o sumiço do dinheiro. “Não posso falar sobre isso. Mas posso dizer que o caso está em segredo de Justiça e que o que se divulgou até agora não passa de especulação”. Ele deveria ter enviado sua defesa à Corregedoria até sexta-feira. O Tribunal diz que ela não foi entregue, mas o advogado do magistrado, Renato Tonini, garante que protocolou a defesa. Na próxima quinta-feira, 26, o órgão decidirá se abre ou não um processo administrativo contra o juiz, cujas penas podem ir de advertência à demissão. Em paralelo, está em curso no MPF um inquérito que apura, entre outras coisas, a suspeita de lavagem de dinheiro.
Flávio Roberto de Souza não tem medo de ir preso. “Se isso acontecer, estou tranquilo. Já pus muita gente na cadeia. Se meu carma for esse, aceitarei tranquilamente”, disse o magistrado. “Não estarei perdendo minha liberdade, apenas terei mais espaço para repousar minha mente.” Ele defende, no entanto, que não há pressuposto legal para isso.
Sobre o Porsche, o piano, o bloqueio de bens, Souza não acha que tenha cometido qualquer equívoco. E, se pudesse voltar no tempo, mudaria apenas uma coisa: “faria tudo mais rápido”. Sua ideia inicial era concluir o processo e dar a sentença num prazo de três meses, mas, segundo ele, uma série de “atropelos” atrasaram a tramitação: como o fato de o Ministério Público de São Paulo também ter feito denúncias contra Eike e a audiência ter quer ser remarcada porque as testemunhas estavam impedidas de depor.
No dia seguinte à entrevista, o juiz quis complementar sua resposta. “Eu voltaria atrás, sim. Pequei por excesso de zelo ao levar os carros para casa. Deveria tê-los deixado sujeitos a danos no pátio da Justiça”, afirmou. “Acho que me expus demais nesse processo e ele acabou virando um confronto pessoal.”
Esse não foi o primeiro confronto nem a primeira vez que Flávio Roberto de Souza se expôs. Em 2007, quando trabalhava como juiz titular de uma Vara Federal no interior do Espírito do Santo, em Colatina, o magistrado mandou prender o então secretário estadual de saúde, Anselmo Tose, porque o governo não havia fornecido, no prazo estabelecido, o medicamento para o tratamento de câncer de uma menina de cinco anos. O caso repercutiu na imprensa nacional. “Foi constrangedor. Fiquei oito horas detido”, lembra Tose, que só se deu conta de que se tratava do mesmo juiz de Eike Batista depois do episódio com o Porsche. “Tínhamos um bom diálogo com a Justiça e com o Ministério Público, por isso não entendemos a atitude arbitrária do juiz.” Souza se orgulha em dizer que foi o primeiro do País a prender um secretário de saúde e que, em poucas horas após a prisão, o medicamento foi entregue à família.
De Colatina, o juiz partiu para Cachoeiro do Itapemirim, onde diz ter vivido os piores anos de sua vida. Seus relatos sobre esse período têm um tom dramático e de revolta. Ele diz que começou a ser ameaçado depois de atuar numa investigação da Polícia Federal contra empresários do setor de granito na região. “Eu e minha família passamos a andar com segurança particular e minha casa virou um bunker.” Na mesma época, a filha mais nova caiu de um balanço e fraturou gravemente o rosto. “Comecei a beber, virei diabético, hipertenso e desenvolvi uma depressão crônica, além de ter comprometido meu fígado.”
Pessoas próximas ao juiz confirmaram que sua saúde é frágil. Ele está de licença médica desde que foi afastado do caso de Eike Batista pela corregedoria mas, segundo a assessoria de imprensa do tribunal, o laudo médico não indica qualquer comprometimento de sua saúde mental. O juiz diz que está tomando dez comprimidos controlados por dia e que, como forma de sair da depressão, tem se dedicado a compor. Ele já tem algumas músicas escritas, está trabalhando nos arranjos e faz planos de lançar um CD. “Só preciso de um produtor.”
Quando era universitário, dava aulas de música para ganhar um dinheiro. Tem violão, guitarra e um piano, que não é de cauda. Antes de estudar Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Souza cursou Comunicação Social, com habilitação em Cinema. Filho de uma dona de casa e de um marceneiro de Cruzeiro do Sul, no Acre, ele se mudou para a capital fluminense aos 17 anos para estudar. Seu sonho era ser jornalista, mas mudou de ideia. Morou com uma tia e depois com os pais até se casar com uma juíza federal, com quem teve três de seus quatro filhos. Eles estão divorciados há cinco anos.
Depois de ser formar em Direito, Flávio Roberto de Souza começou a advogar e chegou a ser procurador do Ministério Público Federal. “Trabalhei em casos relevantes, mas estava insatisfeito. A maioria dos juízes não respondiam ao esforço que colocávamos nas investigações.” Ele desistiu da carreira como procurador e em abril de 2001 tomou posse como juiz federal substituto.
O desembargador aposentado Paulo Barata participou da banca que o aprovou como magistrado e acompanhou a carreira de Souza até aqui. “Difícil saber o que aconteceu. Não havia nada na corregedoria contra ele antes desse fato. Nenhuma denúncia de atos ilícitos e duvidosos”, afirma. Uma fonte próxima ao juiz que preferiu não se identificar contou que ele vinha tratando o processo contra Eike Batista como “o grande caso” de sua vida. “Ele acabou fazendo as coisas de forma atabalhoada, sem respeitar formalidades.”
“Pra mim, era só mais um caso”, retruca o magistrado. Ainda assim ele gosta de frisar o ineditismo do processo que tinha nas mãos, e que agora está sendo conduzido por seu substituto. “Não havia jurisprudência, seria a primeira sentença de um crime difícil.”
Os acionistas minoritários que processam Eike Batista lamentam os desdobramentos e o atraso decorrente deles. “Mas melhor descobrir agora (os problemas envolvendo o juiz) que daqui a cinco anos”, avalia Márcio Lobo, advogado que representa acionistas minoritários da OGX. “Parece história de novela das oito.” De fato, o ex-juiz do caso acabou se mostrando um personagem tão novelesco quanto o protagonista Eike Batista. Agora, em casa, longe da toga, e de todos, ele aguarda por sua sentença.