Poucas semanas atrás, Claudio Borio, diretor de análises do Banco das Compensações Internacionais (BIS), alertou em uma nota solene aos líderes do G-20 que os modernos formuladores de políticas financeiras estão “dirigindo olhando apenas no espelho retrovisor”: eles estão se concentrando tanto nos riscos do passado que não conseguem detectar novos perigos.
E o pior: na medida em que os formuladores de políticas correm para implementar reformas em resposta a uma calamidade financeira, eles tendem a criar distorções que preparam o caminho para o próximo desastre. Uma dessas consequências não intencionais pode estar se formando agora no setor bancário, uma vez que os balanços das instituições financeiras estão cada vez mais cheios de bônus do governo.
Hoje em dia, há uma crença quase unânime entre as autoridades reguladoras ocidentais de que uma maneira de impedir a repetição da crise de 2007-08 é impedir que os bancos assumam riscos absurdos com bônus atrelados a hipotecas subprime, ou instrumentos complexos como as obrigações garantidas de dívida (CDOs, na sigla em inglês).
Em vez disso, os bancos estão sendo conclamados a manter uma proporção maior de seus ativos na forma de instrumentos “seguros”, mais especificamente em dívida soberana ou quase soberana. As autoridades reguladoras do G-20 estão realizando reuniões regulares na Basileia para elaborar regras sobre como os bancos deveriam fazer isso, como parte de uma reforma mais ampla da regulamentação financeira.
Em tese, essa medida parece bastante sensata. Um dos motivos que levaram os bancos a tropeçarem no ano passado foi que muitos deles carregavam grandes quantidades de CDOs de classificações elevadas e outros títulos tóxicos. Estes, não só perderam seu valor durante a crise, como também deixaram de ser negociados, criando um choque de liquidez para os bancos.
Por outro lado, os bônus do governo continuaram com liquidez durante a crise recente (assim como nas últimas décadas). Portanto, parece atraente ter número maior deles em carteira, especialmente porque a dívida soberana é altamente presumida como ultrassegura; tão segura que o rendimento (yield) dos bônus do governo é conhecido como “risk-free rate”, ou taxa livre de risco. Mas poderá esse “voo para a segurança” dos bônus do governo estar por si só criando novos perigos? Afinal de contas, os títulos de dívida do governo dispararam a níveis nunca visto em tempos de paz em muitos países, principalmente nos Estados Unidos e Reino Unido. Os déficits fiscais estão inchando no mundo ocidental. E o nível do comprometimento político para conter esses déficits continua incerto – principalmente porque com os rendimentos muito baixos no momento, há menos pressões sobre os políticos para que eles forcem reformas.
Isso não significa necessariamente que um default total se aproxima; na verdade, um default parece improvável. No entanto, é fácil imaginar que alguns países acabarão corroendo os valores de seus bônus, desvalorizando suas moedas nos próximos anos, imprimindo dinheiro e estimulando a inflação. É ainda mais fácil antecipar um grande aumento nos rendimentos dos bônus – e uma grande queda correspondente nos preços dos bônus -, especialmente quando os bancos centrais encerrarem seus programas de afrouxamento quantitativo. Alguns fundos de hedge espertos estão apostando justamente nisso.
Mesmo assim, a pequena discussão sobre a conveniência ou não dos bancos continuarem acumulando títulos de dívida soberana, tem sido preciosa. Em Sydney, alguns bancos australianos estão reclamando das reformas de liquidez previstas no novo acordo da Basileia. Ironicamente, isso está acontecendo porque a Austrália está numa posição rara e feliz de ter níveis de endividamento baixos e seus bancos locais temem ter problemas para encontrar os bônus de que precisam para atender as novas regras de liquidez do G-20.
Em países onde provavelmente haverá um excedente de bônus do governo à venda, pouca discussão pública está havendo. Talvez isso esteja acontecendo porque os bancos não querem perturbar o equilíbrio da situação; ou talvez porque os próprios bancos centrais não querem chamar atenção para os volumes enormes de bônus do governo que eles próprios têm no momento. Os ministros das finanças dificilmente deverão se queixar dos investimentos dos bancos. Os grandes países industrializados precisarão vender mais de US$ 12 trilhões em bônus do governo este ano e em 2010, para financiarem seus rombos fiscais. Isso é um crescimento de pelo menos um terço, ou US$ 3 trilhões, em dois anos.
Conforme observa Claudio Borio em sua nota, concentrar-se apenas no espelho retrovisor é perigoso; sejam quais forem as causas do próximo choque bancário, elas não envolverão os CDOs hipotecários. Portanto, espero ardentemente que esses bancos que estão com bônus do governo estejam sendo cautelosos o suficiente para se protegerem contra qualquer “crash” futuro nos preços desses ativos; o mesmo vale para aqueles que estão com instrumentos quase-governamentais, como os bônus de agências.
Também espero que quando as autoridades reguladoras da Basileia produzirem suas novas regras de liquidez, os bancos tenham formado uma margem de erro significativa, que reflita uma queda em potencial dos bônus do governo. Isso reforçaria o ponto para os bancos e os investidores de que os bônus do governo não estão automativamente “livres de risco”. Mas eu acredito que o mais importante de tudo é que a atual calma dos mercados de dívida soberana não acalenta os políticos a pensarem que eles podem evitar indefinidamente a necessidade de adotar escolhas fiscais difíceis. Pois, se eles fizerem isso, aqueles bônus do governo “seguros” poderão começar a parecer consideravelmente menos seguros – não só para os banqueiros, mas para todo mundo.