É atribuída ao presidente americano Harry Truman uma das frases mais espirituosas e perspicazes já ditas a respeito dos economistas. A piada só tem sentido em inglês, de todo modo aí vai: “Me deem um economista de uma mão só!”, disse Truman. Em inglês, as expressões “on one hand” (numa mão) e “on the other hand” (na outra) têm o mesmo uso que as nossas “por um lado” e “por outro lado”. Truman se queixava de que todos os economistas viam os fatos por dois lados e só atrapalhavam na hora de tomar decisões. Ele queria um economista de um lado só. Na maior parte dos casos, Truman tinha razão. As decisões econômicas em geral envolvem o equilíbrio entre forças antagônicas. Dar um puxão para um lado costuma desequilibrar o outro.
Esse introito é necessário para entender as consequências das novas metas fiscais anunciadas ontem pelo governo. Elas não representam uma mudança na situação dramática que vivemos. A economia brasileira continua em recessão (a previsão é que o PIB caia no mínimo 1,5% este ano), a inflação continua a subir (deverá fechar o ano em 9,15%, de acordo com a última estimativa do mercado), e o desemprego só faz crescer (foram cortados algo como 700 mil postos de trabalho desde o início do ano). O efeito óbvio da recessão é a queda na arrecadação de impostos, que obrigou o governo a admitir que não cumprirá aquilo com que se comprometera no início do ano. Em vez de economizar R$ 66,3 bilhões (1,15% do PIB) para pagar suas obrigações com os credores, agora a economia será de R$ 8,7 bilhões (0,15% do PIB). Ou até menor. Caso o ajuste fiscal proposto ao Congresso não seja apovado em sua totalidade, pode haver um gasto extra de R$ 26,4 bilhões e um déficit de R$ 18 bilhões (0,3% do PIB) – algo que poderia ser chamado “cus
to Cunha/Renan”.
Era evidente que, por causa da recessão, o governo não teria condição de cumprir a meta anterior – mais por causa da queda na arrecadação (2,9% só no primeiro semestre) do que pela fata de esforço para economizar (os investimentos foram cortados em 36%). O quadro para os próximos anos é ainda mais preocupante. A meta fiscal só voltará a se equilibrar, diz o próprio governo, em 2018. Até lá, a dívida pública poderá chegar a dois terços do PIB. Só a previsão para este ano subiu de 63,4% para 64,7%, um patamar que põe em risco a posição do Brasil como um local seguro para investir, pois ninguém gosta de emprestar mais dinheiro a quem já está muito endividado, certo?
Tudo isso é resultado dos erros cometidos no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff. Sua reação à crise internacional foi um equívoco brutal. Ela agiu como se o Brasil exigisse o mesmo remédio que os demais países para se recuperar do enxugamento de capital gerado pela crise de 2008. Apostou nos gastos públicos para manter o ritmo da economia e amargou, já no ano passado, um déficit de R$ 32 bilhões nas contas públicas, ou 0,6% do PIB. A esta altura do ano passado, em vez de rever as metas fiscais que já se mostravam inviáveis, a gestão do ministro Guido Mantega promovia as célebres “pedaladas” que serão julgadas no mês que vem pelo Tribunal de Contas da União. O resultado fiscal poderia, portanto, ter sido ainda pior. Nada que o governo faz – programa de logística, exportações ou agricultura – parece trazer alento à nossa economia combalida. É aqui que temos a tentação de convocar aquele “economista maneta” de Truman.
Se tivesse apenas a mão esquerda, nosso economista diria mais ou menos o seguinte: a posição subalterna do Brasil no cenário internacional obriga o governo a economizar num momento em que deveria poder gastar; sem os gastos públicos, só com austeridade, a recessão se aprofundará ainda mais, o país tardará mais para voltar a crescer e estabilizar sua capacidade de pagar as dívidas. Para nosso economista canhoto, a redução das metas fiscais é fundamental, ainda que possa ser insuficiente para dar ao governo a necessária capacidade de investir.
Se tivesse apenas a mão direita, nosso economista diria algo assim: o Brasil vive um descalabro nas contas públicas, precisa purgar os erros históricos e as barbeiragens do primeiro mandato, para só então recuperar o ritmo do crescimento; isso será mais fácil se o governo promover um ajuste fiscal ainda mais rigoroso, reformar a administração pública, cortar gastos correntes e, se preciso, até aumentar impostos. O economista destro considera que só a saúde fiscal pode funcionar como um estímulo ao setor privado e ao capital externo para voltar a investir no Brasil.
Se pensarmos no futuro, o destro tem razão. A margem de manobra fiscal para o governo brasileiro – qualquer governo – é mínima. Algo como 92% dos gastos públicos são determinados por lei, e eles têm crescido acima da inflação. A sanha de arrecadar mais para arcar com esses gastos tem contribuído para elevar nossa absurda carga tributária a patamares insustentáveis. Ninguém aguenta mais tantos impostos e tanta burocracia para trabalhar e produzir no Brasil. Mudar tudo isso depende de reformas na previdência, nas leis trabalhistas e na administração pública. Todas essenciais. Nenhuma nas prioridades do Congresso Nacional ou do Executivo. O ex-procurador-geral da Fazenda Cid Heráclito de Queiroz sugeriu, em artigo publicado esta semana no jornal O Estado de S.Paulo, uma lista de 50 medidas de enorme bom senso que poderiam aliviar a situação fiscal da máquina pública. Nem todas precisam de aval do Congresso – mas a soma teria um custo político imenso para um governo cujo capital político está perto de zero.
O ministro Joaquim Levy – o ponta direita na equipe econômica – foi derrotado em sua visão. Ele queria um ajuste mais profundo, sem revisão da meta fiscal. Seria certamente melhor, mas talvez politicamente inviável. No curto prazo, portanto, o governo continuou a jogar com a canhota. Pelo menos, ao que tudo indica, desta vez não haverá pedalada. Ainda que lentamente, o país começa a se dar conta do profundo desequlíbrio que emperra seu crescimento: o descasamento entre nossa capacidade de poupar e nossa necessidade de investir. A única forma de resolvê-lo é com um ajuste fiscal profundo. Na mão esquerda, ele ainda não veio, e a economia continua e continuará um bom tempo na lama. Essa, a má notícia. Na direita, a transparência do governo revela que não há mais como esconder ou adiar a discussão do assunto. Essa, a boa notícia.