Ano : 2010 Autor : Dra. Marina Ribeiro
CONSELHO ADMINISTRATIVO DE RECURSOS FISCAIS (CARF) – PORTARIA 97/2009 PROPÔE ANÁLISE E VOTAÇÃO DE SÚMULA QUE AUTORIZA O FISCO EXAMINAR INFORMAÇÕES BANCÁRIAS DO CONTRIBUINTE INDEPENDENTE DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL: UMA AFRONTA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS E D
O CARF – Conselho administrativo de Recursos Fiscais – tem o propósito de julgar recursos de ofício e voluntário de decisão de primeira instância, bem como os recursos de natureza especial, que versem sobre a aplicação da legislação referente a tributos sob a administração da Secretaria da Receita Federal.
O referido Conselho fora aprovado mediante a Portaria - MF 256/2009, do Ministro do Estado da Fazenda.
O CARF também é um órgão ligado à estrutura do Ministério da Fazenda, formado por representantes do fisco, com a intenção mascarada de fazer com que os litígios tributários tenham solução rápida e efetiva, garantindo ao contribuinte o devido processo legal e oportunidade para ampla defesa.
No entanto não é o que se tem visto diante da Portaria nº 97 de 24 de Novembro de 2009, que submete à análise e votação proposições de Súmulas.
À exemplo temos o seguinte enunciado proposto:
“É lícito ao Fisco, independentemente de autorização judicial, examinar informações bancárias do contribuinte, quando houver procedimento de fiscalização em curso e tais exames forem indispensáveis.”
A referida Súmula, descrita acima, autoriza o acesso irrestrito do Fisco às informações do contribuinte fiscalizado, permissão essa que consubstancia evidente inconstitucionalidade. Ocorre que diante desta, assim como de muitas outras propostas de Súmulas, vê-se a desproporção do que efetivamente foi redigido para com o objetivo a que se propõe a criação deste Conselho, quando afirma que o mesmo garante o devido processo legal e ampla defesa ao contribuinte.
Antes a cláusula do devido processo legal era reconhecida como uma norma implícita. No entanto, ainda que devidamente explicitada/positivada diante de nossa Carta Magna/88, ainda encontramos afrontas ao referido dispositivo constitucional, como é o caso da proposta da Súmula do CARF.
No art. 5º, incisos LV e LIV encontramos a consagração da exigência de um processo formal e regular, antes de qualquer agressão à liberdade e à propriedade de qualquer cidadão. E as mesmas exigências devem existir antes da Administração Pública tomar decisões gravosas à um dado sujeito, dando ao mesmo a possibilidade de contraditório e de ampla defesa. Princípio constitucional com finalidade pública de boa aplicação de justiça e da conservação do equilíbrio jurídico.
Os incisos LIV e LV do art. 5º da Constituição Federal assim preleciona:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
É absoluta a abrangência desta regra, podendo-se notar quando da utilização do vocábulo “ninguém”, ou seja, não é dada a possibilidade de qualquer restrição ao devido processo legal.
Permitir que o Fisco examine informações bancárias do contribuinte sem qualquer autorização judicial é por demais ilimitar os poderes da administração pública, de modo que elimina a efetiva garantia da produção do contraditório, afrontando, indiscutivelmente, a garantia dada pela nossa Constituição Federal. Sem mencionar que implica na concessão ao Fisco de poderes de investigação, acusação, julgamento e condenação, pois à este é dado poderes como de autoridade judicial, uma vez dispensada a intervenção do Magistrado.
Ainda que a prática do ato administrativo seja na forma discricionária, com juízo de conveniência e oportunidade, deverá obedecer a busca do interesse público e a garantia de inexistência de risco de uma atuação abusiva.
No entanto, o que é esta proposta de Súmula se não abusiva?!
Ainda que tal súmula seja votada e devidamente aprovada e publicada, tornando a atuação da administração pública vinculada, uma vez que determinados os elementos e os requisitos necessários para o ato administrativo, ainda assim, teremos uma liberdade muito ampla para a entidade fiscal, pois estará legalmente permitida a sua atuação “independentemente de autorização judicial”.
O que nos faz pensar é se esta não é mais uma estratégia do Fisco para alegar que está de acordo com os princípios norteadores da administração pública, uma vez que estará sob o manto da legalidade.
Não permitir a devida ingerência da autoridade judicial(Magistrado) é como que destruir com a segurança jurídica do indivíduo-cidadão-contribuinte, uma vez que o Juiz natural é um pressuposto de segurança e do Estado de Direito. Somente à ele cabe fazer um juízo de razoabilidade sobre a conveniência da quebra e sua extensão, diante das circunstâncias fáticas e jurídicas do caso concreto.
Tourinho Filho já se manifestou sobre o assunto, vejamos:
"Estando um conflito entre o fisco e o contribuinte, evidentemente, não é a autoridade fiscal que vai dizer se os documentos bancários sigilosos são ou não indispensáveis. Um terceiro, imparcial, é quem pode solucionar o conflito ocorrente entre o interesse do fisco e o direito de privacidade do indivíduo. Esse terceiro é o juiz."
Podemos, ainda, mencionar o Acórdão do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 196.413:
PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. SIGILO BANCÁRIO. QUEBRA. PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO. PRECEDENTES.
1. Firmou-se o entendimento desta Corte sobre a ilegalidade da quebra do sigilo bancário, sem autorização prévia do Poder Judiciário, devido à garantia constitucional da inviolabilidade dos direitos individuais.
2. Recurso Especial improvido.
O sigilo bancário afigura-se como uma garantia constitucional, prevista nos incisos X, XI e XII do art. 5º da CF/88. Tal garantia insere-se na própria intimidade e vida privada dos cidadãos.
O acesso direto das autoridades fazendárias às informações financeiras do contribuinte, independentemente de autorização judicial, seria um atentado contra o devido processo legal e seus consectários ampla defesa e contraditório, pois os contribuintes não teriam conhecimento dessa medida extrema do Fisco, de modo que não poderiam se defender adequadamente.
Segundo a doutrina há dois focos para o direito de defesa: o objetivo e o subjetivo. O primeiro é entendido como indispensável para a segurança de cada indivíduo, existindo vinculação com o Estado de Direito, âmbito em que as entidades estatais, mesmo as do mais alto patamar, obedecem às leis e respeitam os direitos fundamentais das pessoas, permitindo o contraditório quando das controvérsias ou acusações, buscando decisões mais justas.
Enquanto que no segundo temos a proteção jurídica, que somente é atingível através do devido processo legal, seja em âmbito penal, civil ou administrativo. Este inafastável para a realização de uma sociedade democrática, daí sua prevalência sobre a garantia ao sigilo bancário.
Ademais que, diante desta súmula a administração pública corrompe com dois dos princípios próprios do processo administrativo e constitucional, quais sejam, a motivação e a publicidade. O princípio da publicidade no sentido de que deve manter plena transparência de todos seus comportamentos, enquanto que no âmbito da motivação, a administração pública deve motivar todas as práticas de seus atos.
No caso em questão, como não há motivação, a defesa tornar-se-á prejudicada, sendo que o contribuinte não poderá defender-se, tendo em vista que não sabe a justificação da atitude tomada pelo Fisco.
Por conseqüência, abafa os termos do artigo 37 da Constituição Federal:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)
A autonomia do Fisco para examinar as informações bancárias do contribuinte, sem o crivo do Poder Judiciário, faz com que se desconheça o fundamento que conduziu a autoridade fiscal à entender indispensável o exame da documentação bancária dos contribuintes.
Não bastaria a simples requisição da quebra de sigilo bancário, devendo ser necessária a motivação e fundamentação, com a demonstração inequívoca da necessidade e da pertinência para com os fatos que servem de suporte para o pedido. Procedimentos que não mais existiriam com a Súmula proposta pelo CARF.
Tal permissão não atinge a expectativa do devido processo legal, pois não há o mínimo necessário de formalismo, vez que o Fisco estará autorizado a examinar informações bancárias do contribuinte, sem qualquer análise do Magistrado, ou seja, sem que não apresente a motivação para tal. A referida súmula elimina quaisquer mecanismos de proteção da intimidade do contribuinte, e mais, sequer dá oportunidade de manifestação do contribuinte, nem o direito de defesa.
O contribuinte deveria ser informado/notificado previamente sobre a quebra de sigilo, dando-lhe um tempo razoável para submeter a questão ao Judiciário, caso assim entenda. Este seria um parâmetro mínimo para atuação fiscal, com o objetivo de evitar ações arbitrárias e abusivas, desprovidas de razoabilidade, como é o caso desta proposta de Súmula.
Ademais, a proposta de Súmula esbarra no art. 145, §1º, da Constituição Federal:
Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:
I - impostos;
II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;
III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas.
§ 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
O acesso livre às informações sobre os rendimentos e as operações financeiras e bancárias dos contribuintes, sem necessidade de autorização judicial, afronta o direito à intimidade e garantia de sigilo dos dados, sendo estes, dispositivos de segurança, preventivos (art. 5º, X, XII/CF):
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou material decorrente de sua violação;
(...)
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
José Afonso da Silva, no Curso de Direito Constitucional Positivo , já declara:
O princípio do devido processo legal entra agora no Direito Constitucional positivo com um enunciado que vem da Magna Carta inglesa: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, LIV). Combinado com o direito de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV) e o contraditório e a plenitude da defesa (art. 5º, LV), fecha-se o ciclo das garantias processuais. Garante-se o processo, e "quando se fala em ”processo", e não em simples procedimento, alude-se, sem dúvida, a formas instrumentais adequadas, a fim de que a prestação jurisdicional, quando entregue pelo Estado, dê a cada um o que é seu, segundo os imperativos da ordem jurídicas. E isso envolve a garantia do contraditório, a plenitude do direito de defesa, a isonomia processual e a bilateralidade dos atos procedimentais, conforme autoriza a lição de Frederico Marques.
Assiste pois ao contribuinte o direito de opor-se nos termos previstos em lei, sobre toda e qualquer pretensão do Estado, nas suas mais variadas formas de manifestação: informações, pareceres, decisões, perícias e documentos formulados ou apresentados pelo órgão exator.
Um dos argumentos utilizados pela Receita Federal para a quebra indiscriminada do sigilo bancário do contribuinte é que deve prevalecer o interesse público sobre o privado. Contudo, evocar este argumento, como já conhecido pela história política da humanidade é, praticamente, uma forma de intrujar o povo.
No Estado de Direito as decisões das autoridades em geral devem ser fundamentadas, não somente baseadas em textos legais que meramente prevêem sua autorização, devendo, portanto, haver a análise de cada caso concreto.
Diante de tais considerações é que se torna incontestável a inconstitucionalidade da Súmula proposta diante da Portaria nº 97 de 24 de Novembro de 2009, que traz a questão da violação do sigilo bancário, enquanto que temos a presença dos basilares princípios constitucionais – princípios fundamentais, garantias constitucionais – dispostos no art. 5º da Constituição Federal.
Ademais, se os interesses da Fazenda coadunar com os interesses públicos, que é o que “estranhamente” nos faz crer quase sempre, nada mais restará de garantia individual.
A aprovação e positivação da proposta da Súmula do CARF será como admitir que as autoridades fiscais recebam um alvará para devassar, invadir, sem limites e sem parâmetros, a intimidade das pessoas, tanto físicas, quanto jurídicas, que não estarão sob o pálio do devido processo legal, sem a devida ampla defesa e direito ao contraditório.
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