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16 de setembro de 2024O Direito Tributário é um campo de estudo recente no Brasil. Mesmo correndo os riscos que a eleição de marcos temporais normalmente nos impõe, creio ser bastante razoável elegermos a edição da Emenda Constitucional nº 18/1965 (EC 18) como a data de nascimento de nosso Sistema Tributário Nacional e o verdadeiro início da sistematização do Direito Tributário como conhecemos hoje. Ela foi seguida pela Lei nº 5.172/66, denominada “Código Tributário Nacional” pelo artigo 7º do Ato Complementar nº 36/1967.
Adotando este critério, podemos estabelecer uma primeira fase do Sistema Tributário Nacional no período entre 1965 e 1988.
Temos destacado a importância deste contexto histórico para a formação da teoria tributária brasileira, que foi se estruturando nos anos duros da ditadura militar, tendo como referência um Estado autoritário.
Não surpreende que a marca da teoria tributária dessa época fosse o formalismo e uma defesa em máximo grau do princípio da segurança jurídica. É nesse período que se desenvolve a doutrina sobre legalidade tributária (posteriormente chamada de “estrita”), e que Alberto Xavier aporta no Brasil trazendo na mala o dito princípio da tipicidade cerrada — hoje em franco descrédito.
Marco Aurélio Greco nos deu um depoimento preciso sobre o contexto histórico desse período e seus reflexos sobre a formação da teoria tributária.
Em suas palavras, “a variável política que não permitia o debate de questões substanciais levou a privilegiar as análises e discussões jurídicas que se concentrassem nos aspectos formais e linguísticos do texto legal (aspectos da hipótese de incidência), o que tornava a utilização do instrumental vindo da semiótica (na sintática e na semântica) politicamente ‘aceitável’”.
“Debater com a Autoridade no plano sintático e semântico e suscitar questões ligadas à hierarquia (das normas) era um porto seguro onde o questionamento do exercício da autoridade estatal (via tributação) podia se dar sem maiores riscos.”
Há dois aspectos relevantes nesse período que não passaram desapercebidos pelo citado professor, certamente uma das mentes mais brilhantes do Direito brasileiro. Em primeiro lugar, o fato de que a EC 18 revogou o artigo 202 da Constituição de 1946, que veiculava nada mais nada menos que o princípio da capacidade contributiva.
Ou seja, a primeira fase do Sistema Tributário Nacional, segundo o critério que estabelecemos acima, já nasce deixando evidentes as suas bases axiológicas.
Se a Constituição de 1946 foi um avanço democrático após o período autoritário do Estado Novo, a EC 18 marcou o retorno da primazia do Estado como centro irradiador da Constituição e protagonista do Direito Constitucional.
Tanto assim que, como observa Greco, o preâmbulo da Constituição de 1967 registrava que ela era estabelecida pelo Estado para a sociedade, não tendo o povo como protagonista. Como afirma o autor, com toda propriedade, “era uma Constituição do Estado brasileiro”.
Esta situação fica ainda mais evidente quando consideramos a Constituição de 1969 (Emenda Constitucional nº 1/1969), cujo preâmbulo estabelece o seguinte:
“OS MINISTROS DA MARINHA DE GUERRA, DO EXÉRCITO E DA AERONÁUTICA MILITAR, usando das atribuições que lhes confere o artigo 3º do Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o § 1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, e […]
PROMULGAM a seguinte Emenda à Constituição de 24 de janeiro de 1967: […].”
Este contexto histórico e jurídico não pode ser ignorado. O Sistema Tributário Nacional desenvolvido a partir da década de 1960 tinha como ponto de partida uma Constituição imposta, primeiro por um Congresso reunido em um Estado de exceção e depois por ministros militares. Uma Constituição da qual o Estado era o protagonista e o cidadão figurante. Uma Constituição em que a capacidade contributiva tinha sido primeiro revogada e depois abandonada.
Foi nesse ambiente que a nossa doutrina se formou, tendo como referência essas bases constitucionais e a tentativa de proteção dos contribuintes contra um Estado autoritário, tendo um texto constitucional limitado para o desenvolvimento de uma teoria substantiva da tributação.
A segunda fase do Sistema Tributário Nacional inicia-se com a Constituição de 1988 e a sua virada paradigmática. Aponta Marco Aurélio Greco que tal transição em cento e oitenta graus pode ser notada já em seu preâmbulo, em que se registra:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.”
De fato, a mudança não poderia ser mais evidente. Ao invés de imposta pelo Estado ao cidadão, a Constituição de 1988 foi estabelecida do povo para o Estado. Ali já se fala em direitos sociais e individuais, liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
A guinada não poderia ser mais clara, e seus efeitos foram sentidos na mudança de compreensão dos pontos de partida do Sistema Tributário Nacional após a redemocratização do Estado brasileiro.
Escrevendo em 1993, na primeira edição de livro organizado por Ives Gandra da Silva Martins, Marco Aurélio Greco nos dizia que “num Estado democrático de Direito, a interpretação e aplicação do ordenamento jurídico supõe a conjugação e compatibilização entre os valores típicos do Estado de Direito (liberdade negativa, legalidade formal, proteção à propriedade) e os inerentes ao Estado Social (igualdade, liberdade positiva, solidariedade) sem que isto, obviamente, implique institucionalizar mecanismos de dominação disfarçada ou destruição das garantias fundamentais da pessoa humana”.
Em 1995, Ricardo Lobo Torres defendeu sua tese de titularidade na Faculdade de Direito da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) sobre Direitos Humanos e Tributação. Partindo da leitura da Constituição de 1988, o nosso saudoso professor nos trouxe conceitos como o de dever fundamental de pagar tributos e de cidadania fiscal. A própria referência a Direitos Humanos no campo tributário seria impensável na primeira fase.
Note-se que não tardou muito para que uma nova leitura do Sistema Tributário Nacional aparecesse na doutrina, mesmo que, naquela quadra histórica, muitos autores e autoras seguissem presos aos pontos de partida estabelecidos pela EC 18 e pelas Constituições de 1967 e 1969 — como seguem até hoje. Em outras palavras, interpretava-se o novo pelo antigo — como alguns autores já pretendem fazer mesmo após a Emenda Constitucional nº 132/2023.
Luiz Alberto Warat nos ensinava — e alertava — sobre o senso comum teórico dos juristas o qual “designa as condições implícitas de produção, circulação e consumo das verdades nas diferentes práticas de enunciação e escritura do Direito. Trata-se de um neologismo proposto para que se possa contar com um conceito operacional que sirva para mencionar a dimensão ideológica das verdades jurídicas”.
Pós 1988, o senso comum teórico da academia tributária se firmou sobre uma premissa: a de que a Constituição de 1988 deveria ser lida a partir dos mesmos pontos de partida da EC 18 e das Constituições de 1967 e 1969. Porém, já o registramos, não sem que importantes vozes dissonantes já apontassem, poucos anos após a entrada em vigor da Constituição Cidadã, e existência de outra forma de se interpretar o texto constitucional.
Com isso, temos apontado, após 1988, duas principais correntes de pensamento se estabeleceram. Uma que vê no Sistema Tributário Nacional um conjunto de dispositivos mais ou menos isolados cuja finalidade última é proteger o contribuinte contra o Estado, e que muitas vezes chega ao ponto de sustentar que a tributação, em si mesma, é uma restrição a direitos fundamentais.
Outra que, a partir de uma leitura integral do texto da Constituição, reconhece a ambiguidade inerente à tributação, percebendo que o dever de pagar tributos é um dever de cidadania, mas que, ao mesmo tempo, tal dever deve ser limitado pelos parâmetros constitucionais e infraconstitucionais.
Vemos que esta segunda fase se inicia com a entrada em cena do valor solidariedade, identificando-se em Marco Aurélio Greco e Ricardo Lobo Torres seus precursores. Contudo, passaram anos ainda até que se percebesse toda a potencialidade da inserção do Direito Tributário no contexto dos desafios do mundo contemporâneo; passaram anos até que se percebesse que a tributação pode ter um papel relevante em diversos campos, desde a proteção do meio ambiente até a superação de desigualdades (socias, de gênero, de raça, etc.). Como já escrevemos:
De fato, a atividade financeira do Estado é protagonista dos debates sobre os temas mais relevantes do século XXI. Se a discussão gira em torno da contenção da depredação do meio ambiente e da sua proteção para as próximas gerações, o Direito Tributário tem posição de destaque — é só vermos a relevância da questão ambiental na Emenda Constitucional nº 132/2023. Quando se debate a superação das graves desigualdades sociais, de gênero, de raça, etc., mais uma vez entra em cena a tributação como protagonista. Caso o tema seja os desafios gerados pela digitalização da economia e das relações sociais, mais uma vez teremos o Direito Tributário como ator relevante.
Era exatamente neste ponto que estávamos em 2023, antes da edição da Emenda Constitucional nº 132. A interpretação da Constituição de 1988, em todas as suas potencialidades, estava bastante avançada. De um Direito Tributário causal, preocupado apenas com o passado, tínhamos diante de nós um Direito Tributário finalístico, que se apresentava como instrumento da mudança social.
Seguindo a nossa proposta de classificação cronológica, a Emenda Constitucional nº 132 (“C 132) inaugura o que chamaremos, neste texto, de terceira fase do Sistema Tributário Nacional.
Com a entrada em vigor da EC 132 parece-nos que haverá três abordagens que apresentarão distintas leituras dos impactos da mudança na Constituição.
Uma primeira interpretação será de que a EC 132 consolida a leitura solidarista e finalística da tributação, sem, contudo, inovar nos pontos de partida que já haviam sido estabelecidos em 1988. A segunda interpretação sustentará que, de fato, a EC 132 atribuiu relevância a valores como solidariedade e justiça, ressaltando, porém, que essa seria uma inovação decorrente da reforma tributária, que teria alterado as bases axiológicas do Sistema Tributário Nacional.
Já a terceira interpretação será uma repetição do senso comum teórico dos tributaristas, que testemunhamos desde 1988. Uma tentativa de interpretar o novo pelo velho, que defende não só uma certa leitura do texto da Constituição pré-EC 132 — de que ela é um texto puro de segurança —, mas também uma interpretação da EC 132 a partir desta leitura do texto constitucional.
Tenho sustentado, de forma convicta, a primeira interpretação. Como já escrevi, a “EC 132 buscou aumentar a justiça do Sistema Tributário Nacional, incluindo no texto constitucional uma série de dispositivos cuja finalidade é tornar a distribuição da carga tributária mais justa, no sentido de redução da regressividade e das desigualdades, e de aumento da progressividade”.
Questões relevantes como a defesa do meio ambiente e a superação das desigualdades sociais estão lá explícitas na EC 132. Até mesmo o debate sobre a tributação e as desigualdades de gênero encontrou espaço na nova Constituição.
Contudo, não nos parece possível dizer que essas são inovações da EC 132 que já não estivessem previstas no texto constitucional anterior. A possibilidade do manejo da tributação com finalidades extrafiscais para todos esses fins sempre esteve presente na Constituição. Da mesma maneira, a ideia de que que um sistema regressivo é injusto, podendo mesmo configurar um estado de coisas inconstitucional, não é uma novidade introduzida pela reforma tributária.
Assim sendo, parece-nos que a EC 132 e a terceira fase do Sistema Tributário Nacional não necessariamente inovaram nos pontos de partida axiológicos do sistema. Contudo, e isso é verdade, dada a maturidade de certos temas, foi possível atribuir-lhes um tratamento explícito que não encontrávamos no texto anterior.
Princípios e valores que eram inferidos da Constituição pela via da interpretação agora estão previstos de forma escancarada, de modo a não se deixar dúvidas a respeito do que estabelece nossa Constituição Tributária sobre o papel do Direito Tributário na sociedade contemporânea.
Contudo, não é possível descartar as outras interpretações. Certamente haverá aqueles que verão na EC 132 uma mudança e não uma continuidade. Já debati este tema algumas vezes com o professor Arthur Maria Ferreira Neto, da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), e esta parece ser a sua leitura: a Constituição de 1988 era um diploma de segurança que não trazia espaço para o valor solidariedade como elemento de interpretação da Constituição Tributária e possibilitava uma limitada utilização da tributação com objetivos finalísticos, mas há uma virada de paradigmas, com alcance ainda indefinido, na EC 132, a qual teria atribuído, de forma inédita e inaugural, relevância a novos valores e princípios.
Esta leitura intermediária, se mantém aberto o debate sobre a interpretação da Constituição antes da EC 132, ao menos abre espaço para uma limitação temporal de certas controvérsias, admitindo que, a partir de 2023, determinados valores se cristalizaram no texto constitucional.
Nada obstante, há também quem já sustente uma terceira interpretação dos efeitos da EC 132, defendendo que, na verdade, não é ela que deve pautar a interpretação do Sistema Tributário Nacional, mas sim o texto da Constituição anterior, que deve servir de ponto de partida para a interpretação dos novos dispositivos constitucionais, numa espécie de defesa de que o novo deve ser interpretado a partir do antigo, tal como aconteceu com a própria Constituição de 1988. Como vimos, ela seguiu interpretada, por uma parte da doutrina, a partir dos marcos teóricos construídos a partir da EC 18 e das Constituições de 1967 e 1969.
Percebe-se, assim, que há ainda indefinição, ao menos na doutrina, sobre o papel da EC 132 nessa evolução histórica do Sistema Tributário Nacional. Há quem a veja, como eu, como uma continuidade da ruptura com a tradição da primeira fase, a qual já havia sido estabelecida em 1988; quem a veja como o momento de ruptura e mesmo quem identifique nela uma continuidade dos valores e princípios que inauguraram os debates sobre o Sistema Tributário Nacional nas décadas de 1960 e 70.
Por mais que essas divergências acadêmicas jamais sejam completamente superadas, ao virarmos nossa atenção para as instituições e para os órgãos de aplicação do Direito, podemos identificar, cada vez mais, o seu alinhamento com a posição que sustentamos. Essa dissonância cognitiva entre o que sustenta parte da doutrina e o que decidem os tribunais talvez esteja na origem das dificuldades de aceitação de certas decisões dos Tribunais Superiores e mesmo da crise de legitimidade pela qual passa a academia tributária nos tempos atuais.
Fonte: Conjur