A reforma tributária sobre o consumo, prevista na Emenda Constitucional nº 132/2023 e no Projeto de Lei Complementar nº 68/2024, criará um sistema tributário completamente diferente do modelo existente há décadas, tendo sido idealizado baseado em princípios inovadores e atualizados com as necessidades contidas na realidade atual da sociedade.
No entanto, em alguns momentos tem demonstrado um importante distanciamento entre os seus princípios instituidores e a realidade que aos poucos vai se materializando. É o que se tem notado em relação à defesa do meio ambiente e à inexistência de regras diferenciadas que não onerem as empresas com responsabilidade socioambiental.
Esse tema deveria ser uma das prioridades norteadoras, tal como previsto no artigo 145, parágrafo 3º, há pouco incluído na Carta Magna:
“O Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente.”
Vamos nos ater ao princípio da defesa do meio ambiente, sem deixar de registrar os relevantíssimos princípios da simplicidade, da transparência e da justiça tributária, que ainda têm gerado preocupações diante da complexidade da normatização já existente e que ainda será objeto de regulamentação suplementar por meio de leis ordinárias federais, estaduais, municipais, além dos prováveis e incontáveis atos normativos que irão dispor sobre os mais diversos tipos de regimes diferenciados e regimes específicos de tributação.
Como sabemos, o Brasil é um grande produtor de biocombustíveis e há décadas tem desenvolvido tecnologias diferenciadas quando comparado a outras nações. A sociedade brasileira apoia e consume de forma relevantíssima nosso combustível verde. O mundo também demanda um maior desenvolvimento dessa matriz energética, em busca de potencializar a transição do consumo de combustíveis fósseis para energia verde e renovável.
Foi nesse contexto que a 21ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (COP-21) teve como uma das principais conquistas a celebração do Acordo de Paris, ocasião em que os países signatários estabeleceram objetivos voluntários para redução da emissão de carbono.
Como forma de atender os compromissos assumidos, o Brasil formalizou em sua política energética nacional a instituição da Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), introduzida no ordenamento jurídico por meio da Lei nº 13.576/2017, regulamentada pelo Decreto nº 9.888/2019 e pela Portaria nº 419 de 20/11/2019, expedida pelo Ministério de Minas e Energia.
O Brasil, portanto, passou a prever uma série de instrumentos para contribuir com suas metas e para iniciar uma transição para uma economia de baixo carbono.
Dentre esses instrumentos, o legislador previu a figura do crédito de descarbonização, o qual é referenciado como “CBIO”, sendo que cada unidade de CBIO corresponde a uma tonelada de gás carbônico equivalente, calculada a partir da diferença entre as emissões de gases de efeito estufa no ciclo de vida de um biocombustível e as emissões de seu combustível fóssil substituto, estabelecida conforme regulamentação.
Funciona da seguinte forma: o CBIO é um instrumento registrado sob a forma escritural e é emitido por produtores e importadores de biocombustíveis (denominados como emissores primários), devidamente certificados pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), com base em suas notas fiscais de compra e venda. Após a sua escrituração, os CBIOs passam a ser comercializados em mercados organizados.
Ao final devem, obrigatoriamente, ser adquiridos pelas distribuidoras de combustíveis que os retiram de circulação em quantidade baseada em metas individuais compulsórias de redução de emissões de gases causadores do efeito estufa.
Nessa perspectiva, a receita gerada pelo emissor primário tem por finalidade fomentar os negócios dos produtores de biocombustíveis, potencializado o investimento em pesquisas, maior eficiência, busca por novas gerações de biocombustíveis etc.
Na visão do emissor primário (usina sucroenergética), muito se discute sobre a natureza jurídica dos CBIOs. Seriam eles ativos operacionais contabilizados como receita bruta? Seriam ativos financeiros registrados como receitas financeiras? Seriam ainda valores ressarcidos a título de subvenção governamental ou como indenização?
A tributação dependerá da sua natureza jurídica, podendo incidir IRPJ, CSLL, PIS, Cofins e “Funrural” de forma diferenciada ou até mesmo que seja afastada a incidência tributária. De qualquer forma, não há dúvidas de que tais ativos não estão sujeitos ao ICMS e ISS.
À parte da discussão atual — o que a meu ver se aproximaria de uma receita operacional no emissor primário, embora com características financeiras, ganhando sua plenitude financeira a partir da circulação nas partes interessadas e obrigadas —, a reforma tributária no texto como está apresentado piora, e muito, a tributação desses títulos.
O texto em tramitação no Senado é silente em relação à introdução dos CBIOs em regimes diferenciados de tributação, em total dessintonia com as políticas públicas constitucionais que estimulam um meio ambiente equilibrado e o princípio tributário constitucional “da defesa do meio ambiente” como anteriormente apresentado. Aliás, onde hoje há somente tributação no âmbito federal (embora discutível em diversos aspectos), passaria também a ser fato gerador para tributação pelos estados e municípios por meio do IBS.
Em outras palavras, a reforma tributária, como está, apresenta um grande desincentivo para que as empresas de produção de biocombustíveis invistam ainda mais recursos em tecnologias de ponta para propiciar a transição energética.
Há ainda que se considerar que o novo arcabouço tributário deveria ter uma coerência quando se trata de preservação do meio ambiente. Ora, se por um lado o Imposto Seletivo tem por objetivo desestimular operações com bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, por outro lado, mutatis mutandis, aquelas operações que tragam benefícios deveriam ser incentivadas tributariamente.
É importante destacar como argumento adicional ao anteriormente exposto, que a Constituição também privilegia a tributação dos biocombustíveis em comparação com os combustíveis fósseis como obrigação do Poder Público. É o que emana do inciso VIII, parágrafo 1º do artigo 225 da Carta Magna:
“Incumbe ao Poder Público “manter regime fiscal favorecido para os biocombustíveis e para o hidrogênio de baixa emissão de carbono, na forma de lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em relação a estes, especialmente em relação às contribuições de que tratam o art. 195, I, “b”, IV e V, e o art. 239 e aos impostos a que se referem os arts. 155, II, e 156-A.”
Embora o CBIO não seja o próprio combustível, a sua existência está relacionada numa simbiose perfeita com a produção dos biocombustíveis. E cada vez mais essa relação ganha relevância como política de desenvolvimento público. Note, por exemplo, que a recente publicação da Lei nº 14.993, de 8 de outubro de 2024, que trata do “combustível do futuro”, prevê o aumento do teor de mistura de etanol anidro à gasolina C e do teor de mistura de biodiesel ao diesel comercializado ao consumidor final.
Enfim, nosso sistema jurídico que envolve a estrutura constitucional com seus princípios e mandamentos, bem como a atual política pública de incentivo à produção de biocombustíveis, além do clamor social por um meio ambiente mais equilibrado, contribuem de forma robusta para que o legislador reavalie, no âmbito da reforma tributária a ser implementada, as previsões quanto à tributação do crédito de descarbonização (CBIO).
Como o Projeto de Lei Complementar nº 68, de 2024, ainda está em tramitação no Senado, incentivamos que parlamentares abordem esse conteúdo para que sejam incorporadas regras específicas quanto à tributação dos créditos de descarbonização ou quaisquer outros direitos que visem à preservação do meio ambiente e fomentem políticas de transição energética para uma economia de baixo carbono.
Fonte: Conjur