Apesar de utilizada como última medida em ações judiciais do âmbito do direito societário, o instituto da intervenção judicial não tem fundamentação legal expressa no ordenamento jurídico brasileiro.
O artigo 49 do Código Civil de 2002 prevê a possibilidade de que, na falta da administração da pessoa jurídica, o juiz, a requerimento de qualquer interessado, nomear-lhe-á administrador provisório. Contudo, as hipóteses que implicariam a tal “falta” não foram definidas pelo artigo, gerando margens para diferentes interpretações da aplicação da norma ao caso concreto, mas, a princípio, exigem a demonstração de justa causa e a premente necessidade de salvaguarda dos interesses dos sócios e/ou da sociedade, como na hipótese de eventuais irregularidades de administração.
Comumente, a aplicabilidade deste instituto, na prática, se dá pela nomeação de interventor judicial às empresas que são objetos de conflitos societários — por exemplo, em ações de dissolução de sociedade ou dissolução parcial de sociedade, ou ações de responsabilidade do administrador — com fulcro nos ditames processuais que versam sobre o poder geral de cautela dos juízes e/ou medidas assecuratórias de obrigações de fazer e não fazer perante a pessoa jurídica, ou seja, pode-se invocar os artigos 297 e/ou 497 do Código de Processo Civil:
Art. 297. O juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para efetivação da tutela provisória.
Art. 497. Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.
Parágrafo único. Para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo.
A par do respaldo legal nas disposições do artigo 297 supramencionado, vale apontar que a imposição da intervenção judicial somente pode ser medida pontual e transitória, até porque se trata de situação excepcional em que a vontade dos sócios/acionistas fica afastada, temporariamente, a fim de preservar o patrimônio comum, além da função social e econômica da pessoa jurídica para que possa continuar funcionando mesmo quando houver sérios impasses de gestão.
Ou seja, a indicação de um interventor judicial alude a situações urgentes e excepcionais, em hipóteses em que se busca a imediatez para se evitar danos (ou o seu o seu agravamento), como no adimplemento de obrigação de fazer e não fazer, por exemplo.
No processo judicial, qualquer pessoa com legítimo interesse e titularidade pode requerer a nomeação do interventor judicial, mas, normalmente, o pedido é feito por aqueles com qualidade de sócios/acionistas. Nada impede, entretanto, as situações em que os juízes, no exercício do seu poder geral de cautela, decidam de ofício por nomear um interventor para a empresa objeto de conflito.
Nestes termos, mesmo ausente um pedido expresso das partes para nomeação de interventor judicial, o juiz não estaria afastado do princípio da adstrição ou congruência, porque, diante do poder geral de cautela ou pelo princípio da fungibilidade, atributo das medidas cautelares, o objetivo é manter a sociedade operando até que uma composição ou decisão de mérito sejam alcançadas.
O poder geral de cautela, por si só, autoriza ao juiz que implemente a medida que considerar a mais adequada para afastar o perigo de dano, não havendo obrigatoriedade em acolher o que as partes requereram, como acontece no julgamento de mérito.
Conforme já mencionado, nas situações em que houver pedido de tutela cautelar para que seja afastado um diretor/administrador, pode o magistrado, utilizando-se do poder geral de cautela e da fungibilidade dessas medidas, modificar a providência postulada pela parte a fim de determinar outra que se mostre mais assertiva para assegurar a efetividade do processo.
Por exemplo, em casos de disputas societárias, como em uma ação de dissolução parcial de sociedade, onde o sócio ‘A’ solicita o afastamento do sócio ‘B’ da diretoria/administração da empresa e pede que ‘A’ seja nomeado para a gestão exclusiva, enquanto o sócio ‘B’ faz o mesmo pedido para si, o juiz pode adotar a solução que entender mais pertinente, como nomear um interventor judicial, um terceiro imparcial e alheio ao conflito, para gerir os negócios da companhia de maneira mais eficiente e justa.
Ainda, na linha da provisoriedade da medida, pontua-se que a intervenção judicial tem sempre natureza cautelar e não antecipatória, de maneira que não pode haver condenação de mérito consubstanciada em manter a empresa em regime de intervenção de um terceiro que não é sócio/acionista e que não foi nomeado diretor conforme o estatuto social. Assim, ao termo final da ação, é impossível manter-se o administrador do Juízo, sendo necessário fixar-se quem dos litigantes (ou representantes à sua escolha) permanecerá no controle da companhia.
Com efeito, a intervenção judicial serve a garantir a minimização dos riscos às atividades sociais e à continuidade da empresa e, por isso, é ideal que o magistrado e as partes facilitem a atuação do interventor para tornar a intervenção e a pós-intervenção menos traumáticas.
Exige-se que o magistrado adote uma postura proativa na condução do processo, garantindo o contraditório, com diálogo franco e aberto entre as partes e, consequentemente, assegure a efetividade do processo.
É relevante ponderar que, nas hipóteses de intervenção judicial, o princípio da intervenção mínima nas relações de direito privado, principalmente empresariais, fica mitigado.
No entanto, situações de intensa litigiosidade requerem parcimônia, e decisões drásticas podem não atender à máxima da preservação da empresa e função social. Por isso, se admite a figura da intervenção, que também em razão da ausência de previsão específica na legislação brasileira, admite a figura do interventor judicial direto (cogestor), com o papel de um administrador propriamente dito da sociedade, ou somente de interventor judicial de observação.
A intervenção de observação tem por objetivo apenas fiscalizar os atos de gestão dos administradores, sem ter que afastar a diretoria, sempre visando o melhor interesse da companhia.
… Sabe-se que, em matéria societária, vige o princípio da intervenção mínima do Estado-Juiz nas questões e deliberações sociais. Referido princípio está, na atualidade, até mesmo positivado na Lei 13.874, de 20.09.2019 que, em seu art. 2º, III, estabelece “a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas” e, ainda, ao prever no art. 1º, §1º, que “Interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas”. E, mesmo antes da promulgação da lei que instituiu a declaração de direitos de liberdade econômica e estabeleceu garantias de livre mercado, a jurisprudência já sinalizava pela intervenção mínima do Estado-Juiz nas questões societárias
No julgado acima, a cautela do Tribunal de Justiça de São Paulo, expressada pelo relator Jorge Tosta, prestigiou a nomeação de um longa manus do juiz na empresa: interventor-observador a fim de fiscalizar os atos de gestão dos administradores, no interesse de uma sociedade empresária, o qual deverá apresentar ao Juízo de origem relatórios mensais, além de comunicar, de imediato, quaisquer informações relevantes que possam comprometer a saudável e eficiente administração da empresa.
Também há quem entenda que existem diversas modalidades de intervenção, algumas das principais são:
(a) interventor cogestor: aquele nomeado que detém poderes de administração geral da sociedade;
(b) interventor observador: aquele que não interfere na administração e fica limitado a fiscalizá-la e prestar informações ao juízo;
(c) interventor mediador: figura híbrida que normalmente atuou como interventor-observador e tem elementos para auxiliar o mediador na autocomposição das partes;
(d) interventor executor de medidas concretas: nomeado pelo juízo para à prática de atos específicos e bem delineados pelo juiz, não estando autorizado a todos atos de administração como o interventor cogestor.
De outro ângulo, impende pontuar que, se a medida da intervenção é sempre transitória, é certo que pode ser revogada nos moldes do artigo 296 do CPC, que versa que “a tutela provisória conserva sua eficácia na pendência do processo, mas pode, a qualquer tempo, ser revogada ou modificada”.
Outrossim, além de revogada, a tutela da intervenção judicial pode também ser modificada a qualquer tempo a critério do juiz, de ofício ou por provocação, em se tratando de medida assessória que busca preservar o resultado útil e eficaz do processo, o juiz, portanto, tem discricionariedade para “administrar” a intervenção de acordo com os resultados obtidos.
A concessão da intervenção, conceituada tal qual tutela provisória, exige os mesmos requisitos para sua viabilidade, não dispensando a plausibilidade do direito, o perigo da demora e o risco ao resultado útil do processo ao ser necessário aguardar sentença ou acórdão de mérito.
Por outro lado, não se pode ignorar que a intervenção judicial, embora essencialmente destinada à preservação da empresa e, apesar de se configurar como uma tutela cautelar, acaba por servir também como elemento de prova.
Mesmo que a perícia não possa nunca se confundir com a intervenção judicial — uma vez que os institutos e os procedimentos são bem diversos —, não se pode negar que os relatórios protocolados pelo interventor judicial fornecem dados e subsídios que funcionam como meios de prova para respaldar o acolhimento de uma tese ou de outra em favor de uma das partes litigantes. Isso porque, é claro que os relatórios do período de intervenção podem refletir a situação passada da administração e conduzir à responsabilização de um diretor/administrador anterior, o que pode e deve ser considerado pelo magistrado no julgamento de mérito.
Em um foco doutrinário, Luiz Felipe Spinelli, João Pedro Scalzilli e Rodrigo Tellechea ensinam em seu livro que “a nomeação de um observador é a modalidade mais branda de intervenção, sobretudo porque não impõe a remoção dos administradores designados pelos sócios. Seu objetivo é assegurar a integridade do patrimônio societário, garantir que os sócios mantenham o acompanhamento da marcha dos negócios, bem como a regularidade do manejo dos fundos sociais. Ante a impossibilidade de uma inspeção judicial constante e aprofundada na empresa, o juiz a encomenda a um administrador judicial por cujos olhos se verão o exercício da atividade e as suas dificuldades. Assim, o interventor enxerga pelo magistrado, em uma espécie de exame ocular por interposta pessoa, realizando verdadeira inspeção na administração social. Nessa linha, o interventor observador inspeciona e controla a sociedade para informar o juiz sobre qualquer irregularidade. A medida busca proteger, ainda que de modo mediato, o interesse social, prevenin
do o esvaziamento do patrimônio da sociedade, a retirada ilegal de valores por parte de sócios e administradores ligados ao controlador, e a dilapidação do acervo por má gestão, elementos fáticos extremamente relevantes para justificar a utilização do remédio”.
Outrossim, deve-se destacar também a excepcionalidade da decretação de intervenção judicial. Em regra, devem prevalecer outras medidas acautelatórias de menor onerosidade aos acionados. Isso porque é claro que a intervenção — principalmente com o interventor cogestor — é traumática e o intento da sua imposição não é apenas o da ótica social e de preservação da empresa, mantendo empregos e eventualmente até abastecimento de mercado, mas também ter um caráter pedagógico de punir os sócios e até de estimular que haja algum tipo de consenso, acordo entre as partes litigantes.
Além disso, o interventor judicial não pode ser confundido com alguém responsável por ‘salvar’ um negócio que foi mal estruturado e mal conduzido por anos. Contudo, fazendo o interventor seu trabalho dentro dos limites indicados pela decisão que o nomeou, a empresa tiver sucesso, ficará ainda mais evidente os desvios, abusos e incompetências da administração anterior.
A intervenção, no mais, também é comum em processos de recuperação judicial, veja-se o que o desembargador Cesar Ciampolini do Tribunal de Justiça de São Paulo fez constar do acórdão de agravo de instrumento julgado em 2020 acerca do tema que:
Todavia, às Câmaras não são estranhas situações em que, dado o contexto fático, havendo indícios suficientes de fraudes ou irregularidades, autoriza-se o julgador a lançar mão, em autos de recuperação judicial, ex officio ou a requerimento do credor ou da administradora judicial, de medidas assecuratórias do próprio prestígio da autoridade da Justiça ainda mais graves do que a nomeação de watchdog–.
Em qualquer uma das hipóteses ou modalidades de intervenção judicial acima mencionadas, a intromissão na esfera particular da sociedade traz riscos à liberdade de iniciativa dos sócios, bem como à violação do sigilo dos negócios e à continuidade das atividades.
Contudo, em litígios societários, frequentemente nos deparamos com conflitos de interesses pessoais envolvidos e violações de dispositivos legais ou contratuais. Nesse sentido, caso o litígio seja levado ao Poder Judiciário, é essencial que seja conduzido prioritariamente, considerando os interesses da própria sociedade, seguido do princípio da intervenção mínima.
Frise-se novamente que a intervenção é excepcional e tem caráter provisório, com um escopo bem definido pelo magistrado e deve ser desenvolvida sob o seu atento controle, para evitar prejuízos.
Por fim, não se vislumbra qualquer impedimento para que, durante a intervenção judicial, as partes possam, de comum acordo, chegar a uma composição sobre o interventor que atuará na administração da sociedade, ou que possam até mesmo encerrar o processo em si, o que vai ao encontro dos princípios orientadores do Código de Processo Civil, que são: boa-fé, cooperação, autocomposição, economia e celeridade processual.
Fonte: Conjur