No cenário jurídico brasileiro, temas relacionados à recuperação judicial de empresas em crise — Lei nº 11.101/05 (LRE) — e à realização de acordos de leniência por empresas por atos lesivos à administração pública — Lei nº 12.846/13 (LAC) — são objetos frequentes de notícias.
De um lado, tem-se uma conjuntura econômica instável com pouca previsibilidade, o que fragiliza a atuação de muitas corporações, levando a um aumento de pedidos de recuperação judicial. De outro, tem-se o maior desenvolvimento de políticas anticorrupção desde o início da operação “lava jato”, que deu notoriedade, na esfera da corrupção e crimes contra a administração pública, às possibilidades negociais de, mediante cumprimento de requisitos e colaboração com investigações, ter-se o abrandamento de reprimendas aplicadas pelo Estado.
As duas esferas jurídicas são importantes de formas diferentes para a preservação empresarial. Para a recuperação judicial, esse é um princípio fundamental a fim de evitar problemas sociais com a liquidação de empresas e garantir a permanência em mercado como fomento socioeconômico, permitindo, assim, a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores (artigo 47 da LRE). Sob a perspectiva administrativa, a leniência permite a recuperação de ativos de forma acordada e, muitas vezes, sem que haja dissolução compulsória da pessoa jurídica (artigo 19, III, da LAC). Ambas haviam de se cruzar.
Nesse contexto, é necessário pensar sobre casos de empresas que realizaram acordos de leniência nos quais se obrigaram ao pagamento de multas administrativas, que posteriormente ajuizaram pedidos de recuperação judicial.
A grande discussão reside, então, em definir se os créditos advindos da leniência devem ser considerados sujeitos à recuperação judicial da companhia beneficiada pela leniência (artigo 49, caput, da LRE), tendo suas execuções suspensas com o deferimento do processamento (artigo 6º, da LRE), e sendo pagos conforme o plano de recuperação judicial que vier a ser aprovado (artigo 59, caput, da LRE), ou se configuram créditos não-sujeitos por tratarem de valores cobrados por meio de execução fiscal (artigo 6º, § 7º-B, da LRE).
Optar por uma opção ou outra pode, em princípio, aparentar preferência por certo âmbito. Entender que o crédito não se submete à recuperação judicial é, na prática, dizer que a execução da obrigação contraída com a administração pública será priorizada, com o pagamento de valores por práticas ilícitas sendo atendido antes de direitos de outros credores sujeitos ao procedimento recuperacional. Sob outro viés, conduzir o pagamento de multas decorrentes de negócio jurídico com confissão de ilícitos para o processo de recuperação judicial pode parecer colocar em segundo plano a relevância, até como política pública, do combate às práticas lesivas à administração.
O problema, na realidade, está em entender se os créditos fiscais de natureza não tributária, como as multas negociais junto à administração pública, possuem os mesmos privilégios dos créditos tributários, cujas execuções individuais seguem em paralelo aos pagamentos previstos no plano recuperacional, com possibilidade de parcelamento em nome da preservação da empresa (artigo 10-A, da Lei nº 10.522/02).
A questão não é pacificada. De um lado, é possível entender que, por se tratar de crédito detido pela Fazenda Pública, passível de inscrição em dívida ativa e cobrado mediante execução fiscal, a multa estabelecida em acordo de leniência teria as mesmas características e seguiria o mesmo regime dos créditos tributários, com fundamento na definição do artigo 2º da Lei de Execuções Fiscais, que diz que “a Dívida Ativa da Fazenda Pública, compreendendo a tributária e a não tributária, abrange atualização monetária, juros e multa de mora e demais encargos previstos em lei ou contrato”.
Por outro lado, é possível defender que a situação dos créditos tributários é excepcional e foi estabelecida pelo legislador ante a importância arrecadatória dos valores para o erário e para fins sociais, e que os valores negociais lenientes não gozariam das mesmas prerrogativas. Isso porque, nessa toada, o princípio da preservação empresarial poderia se sobressair à punição por um ato ilícito, que já é objeto de permissão de negociação e parcelamento. Ademais, seguindo essa linha, dar ao crédito fiscal não tributário natureza não-sujeita seria privilegiar um credor apenas por se tratar de ente público, a despeito de outros credores. Sob essa perspectiva, em uma interpretação em harmonia com os demais dispositivos da LRE e com os princípios da recuperação judicial, seria necessário submeter as multas de leniência ao plano recuperacional.
Ainda não bem assentada a decisão entre uma posição ou outra, a construção de uma orientação que, inclusive, dê segurança jurídica às empresas demandará tempo e dedicação dos operadores do Direito. Talvez, caso o tema da ADPF 1.051, que envolve a preservação empresarial de companhias que firmaram acordos de leniência com prestações pecuniárias substanciais no âmbito lavajatista, não se encerre no aspecto negocial em que hoje se encontra e avance sobre o cerne da discussão, o Plenário do Supremo Tribunal Federal venha a se manifestar sobre o tema, dando um norte para a questão.
Afinal, se está tratando de dois corolários fundamentais às respectivas áreas: a punição e reparação de dano por práticas ilícitas e a preservação empresarial. Um não deverá ser sobreposto ao outro; há de se achar um equilíbrio.
Fonte: Conjur