STJ fixa critérios para memorial de registro de propriedade rural
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10 de junho de 2024Em julgamento do dia 8/4/2024, reproduzido no acórdão nº 1004-000.137, a 4ª TE da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) reconheceu a dedutibilidade de despesas com multas decorrentes de acordo de leniência firmado com base na Lei nº 12.846/2013. Na coluna de hoje, faremos uma análise crítica do teor do voto vencedor, da lavra do conselheiro Itamar Alves Ruga.
Primeiramente, cabe uma reflexão de ordem processual: esse parece ser o primeiro caso a ser julgado especificamente sobre as despesas decorrentes de acordos de leniência, com todas as particularidades inerentes a esse tipo de contrato firmado com o MPF. Considerando que a análise da dedutibilidade de multas não-fiscais, nos termos do PN CST nº 61/79, está sujeita à subsunção na regra geral de dedução, do artigo 47 da Lei nº 4.506/64, que exige uma análise relacional entre a despesa e a atividade da empresa, mediada por diversos critérios, como a relação de causalidade e os atributos de necessidade, usualidade e normalidade, não vislumbramos perspectiva de identificação de um paradigma com semelhança fática o suficiente que justifique a admissão de eventual recurso especial.
Por outro lado, causa espécie que um caso de tamanha relevância fática, jurídica e econômica tenha sido julgado por uma turma extraordinária, que tradicionalmente deveria se ocupar de casos de menor complexidade e valor. Por força do artigo 118, §12, I, do Ricarf, o referido acórdão não poderia ser utilizado como paradigma para eventuais casos futuros sobre o mesmo tema. Como já defendemos anteriormente, com o novo Ricarf, ao unificar a estrutura dos dois tipos de turma e eliminar a distinção entre conselheiros, bem como pelo potencial coincidência de competências de matéria (separadas apenas pelo “preferencialmente”), não há mais razão da distinção entre turmas ordinárias e extraordinárias, para fins de restringir a utilização dos acórdãos destas como paradigmas. Isso deveria ser objeto de revisão no regimento.
O voto inicia com a pertinente observação de que as multas não são decorrentes diretamente dos ilícitos realizados, mas sim do acordo de leniência firmado com o MPF, e que o acordo per si seria um ato lícito, negocial, do que decorre a referida sanção.
Concordamos com a distinção traçada e, em outra oportunidade, já havíamos identificado pelo menos quatro tipos de relações distintas entre a despesa e o ilícito, quais sejam: 1) situações de confusão entre a despesa e o ato ilícito (identidade); 2) situações nas quais a despesa é consequência do ato ilícito (resultado imediato); 3) situações nas quais a despesa é consequência de um ato lícito, mas tem como causa remota um ato passível de punição (resultado mediato); e 4) situações nas quais a despesa é a causa à realização de um ato ilícito posterior (causa).
Pontuou-se que o acordo de leniência, pelo lado do Estado, seria “um instrumento jurídico legítimo e incentivado pelo Estado, visando ao combate à corrupção e à reparação dos danos causados à administração pública”. Pelo lado do contribuinte, seria um “gasto inafastável e inevitável”, para afastar severas penalidades a que estaria sujeito caso não aderisse à avença.
Ao que parece, o colegiado entendeu que essa inevitabilidade afetaria a quantificação da renda disponível, para fins de tributação, pois seria uma despesa realizada em situação de interesse legítimo da empresa, visando a continuidade de suas atividades. Essa conexão entre renda líquida e disponibilidade está presente em alguns trabalhos de Luís Eduardo Schoueri, e se baseia na conclusão de que o conteúdo do “princípio da renda líquida” teria seu conteúdo haurido do artigo 43 do CTN.
Nessa linha, o voto afirma que eventuais vedações à dedutibilidade decorreriam de despesas que não sejam imputáveis à atividade econômica do contribuinte, e que seriam gastos “evitáveis”. Parece haver implícito aqui dois níveis de análise: 1) a relação de causalidade entre a despesa e a atividade econômica; e, sucessivamente, 2) o grau dessa relação de causalidade, que abrangeria apenas as despesas necessárias e inevitáveis.
O racional acima reflete bem o desenvolvimento da cláusula geral de dedutibilidade na história do imposto de renda brasileiro, que teve influência tanto estruturação original da definição de despesa operacional/empresarial (Betriebausgaben) introduzida na Lei do Imposto de Renda alemão de 1920, e depois em 1934, positivando a fórmula cunhada pelo RFH, de que corresponderia a “todas as despesas causadas pelo negócio” (alle durch einen Betrieb veranlaßten Ausgaben als Werbungskosten zu behandeln), conjugada à exigência oriunda da Legislação do Imposto de Renda norte-americano de que elas, para serem dedutíveis, fossem ordinárias e necessárias para a atividade (“There shall be allowed as a deduction all the ordinary and necessary expenses paid or incurred during the taxable year in carrying on any trade or business”). Por um lado, há o exame da conexão entre o gasto e as esferas econômica ou privada do contribuinte, por outro, há também a exigência de um nível particular dessa conexão, estreitando mais o âmbito de alcance da cláusula geral estabelecida no artigo 47 da Lei nº 4.506/64.
O voto aponta que os conceitos de “necessidade, normalidade e usualidade” são dotados de alto grau de indeterminação, o que exige cuidado na sua interpretação. Não obstante, o não é muito claro a respeito da aplicação desses critérios.
Por um lado, aduz que “afirmar que as despesas operacionais são dedutíveis não implica que todas as demais despesas sejam automaticamente excluídas do escopo de dedutibilidade”, e que a interpretação da regra deveria ser extensiva para considerar as despesas inafastáveis. Ao que parece, estaria se referindo aqui às despesas não-operacionais, pela definição legal, mas que ainda assim sejam inafastáveis, saindo do âmbito da disposição do contribuinte.
Nesse ponto, o voto sugere que o critério de necessidade prepondere sobre o próprio caput do art. 47 da Lei nº 4.506/64, autorizando a dedução de gastos necessários em determinado contexto, mesmo que não ligados à atividade da empresa e a manutenção da respectiva fonte produtora. Parece haver, nesse ponto, uma “substituição” da aplicação do princípio da renda líquida em sua dimensão objetiva (ligada à dedução das despesas relacionadas à atividade), por sua dimensão subjetiva (ligada às despesas que, ainda que pertencentes à esfera privada, sejam indisponíveis ou compulsórias).
Por outro lado, aduz que o critério de usualidade ou normalidade deva receber uma exegese mais ampla para não excluir despesas essenciais, ainda que atípicas ou extraordinárias. Esse ajuste interpretativo é correto e concordamos com o voto. Como já defendemos em outra oportunidade, a normalidade de uma despesa se relaciona diretamente com o contexto em que ele é realizado, e não com a quantidade absoluta de vezes em que ocorre, e diz respeito à ideia de “norma”, àquilo que é regular ou usual diante de certa circunstância da atividade econômica.
Assim, conclui que a multa em questão seria “uma despesa inafastável e compulsória, cuja ocorrência se deu em virtude da necessidade de regularização e continuidade das atividades empresariais, além de evitar sanções mais gravosas que poderiam comprometer a própria existência da fonte produtora”, estando atendido os requisitos da Lei nº 4.506/64.
O voto aponta também a ausência de vedação expressa à dedutibilidade desse tipo de multa ou de gastos inevitáveis para o contribuinte no artigo 13 da Lei nº 9.249/95, e que o foco do artigo 47 da Lei nº 4.506/64 seria a dedução de despesas indispensável para a continuidade das operações empresariais. Além disso, pontua a previsão específica de dedução de perdas extraordinárias de bens que foram objeto de inversão, como em casos fortuitos, força maior ou obsolescência, e que a Lei nº 8.981, em seu artigo 41, §5º, vedou expressamente apenas a dedução de multas fiscais.
A partir dos referidos dispositivos, ele conclui que a multa do acordo de leniência, pela sua excepcionalidade, seria uma despesa necessária à atividade. Esse trecho do voto é interessante, pois o conselheiro esboça um raciocínio coerentista, apontando decisões fundamentais do legislador no estabelecido do regime jurídico de dedutibilidades, para daí deduzir critérios para analisar um caso não regulado.
A despeito disso, há um trecho no qual parece haver um salto argumentativo (ou deve ser lido cum grano salis), ao sustentar que a dedutibilidade das multas não-fiscais estaria autorizada pela legislação. Nesse ponto, em razão da ausência de regra expressa, elas também deveriam se submeter ao exame do artigo 47 da Lei nº 4.506/64 e, a despeito da sua inafastabilidade, devem ter sua conexão com a atividade ou a manutenção da fonte demonstrada.
Ademais, o voto traz algumas considerações de ordem econômica e sobre o papel da empresa na econômica, bem como uma comparação entre a não cumulatividade na EC 132/23 e a regra de dedutibilidade, mas nos parece que tais pontos não formam a ratio decidendi do acórdão, por isso não serão abordados.
Analisando a ratio do acórdão, há um ponto que foi mencionado no início do voto vencedor e, em nosso entender, deveria ter sido mais bem considerado na análise: a natureza compensatória da multa decorrente do acórdão de leniência. Por natureza compensatória, refiro-me à finalidade de compensar a eventual vantagem obtida de forma indevida, seja revertendo essa compensação ao prejudicado, seja pela simples absorção do benefício ilícito em favor do Estado.
Esse ponto foi enfrentado pela Corte Constitucional Alemã em 1990, seis anos após a lei que introduziu uma vedação expressa à dedução de multas em geral, para avaliar a constitucionalidade da aplicação dessa regra a algumas multas aplicadas no âmbito da legislação antitruste, que tinham como finalidade total ou parcial não punir o contribuinte, mas absorver a vantagem econômica decorrente de acordos ou ações anticompetitivas (Abschöpfungsteil). Em uma decisão histórica, entendeu-se que o princípio da capacidade contributiva não seria compatível nem com um regulamento que permita que o infrator reter todo o seu lucro sob os pontos de vista infracional e tributário, nem com um regulamento que combine a absorção total do lucro indevido, de acordo com os princípios da lei de infrações administrativas, com uma carga tributária adicional (pela negativa da dedução). Portanto, caso opte pela tributação do lucro obtido com uma infração administrativa, o cálculo da multa destinada à absorção do resultado ilícito deverá ser deduzido do imposto que já incidiu sobre ele.
Em suma, concluiu-se que em se tratando de multas com finalidade compensatória ou de absorção, a legislação não poderia conduzir a essa “dupla absorção” do lucro ilícito. Viola-se, assim, o princípio da capacidade contributiva sempre que a soma da multa compensatória com a carga tributária decorrente da restrição da dedução exceder a vantagem econômica obtida ilicitamente. Em razão do entendimento formado pelo BVerfG, foi publicada a Steueränderungsgesetz (StÄndG) 1992 que, entre outras modificações, incluiu a sentença 4 no §4º (5), frase 1, n. 8 da EStG, prevendo especificamente essa exceção à regra de dedutibilidade.
Esse raciocínio não nos é alheio por duas razões.
A primeira em razão dos princípios envolvidos na solução do caso (bem como a posição normativa deles), bem como aqueles ligados à aplicação de sanções, no caso da legislação concorrencial, serem semelhantes. As conclusões desenvolvidas pela corte alemã são, por melhores razões, ante a ausência de proibição expressa da dedução, aplicáveis ao âmbito brasileiro.
Em segundo lugar, tampouco é alheio o Carf à natureza compensatória de determinadas multas, como já demonstramos em artigo dedicado a analisar a dedutibilidade de multas aplicadas em termos de ajustamento de conduta (TAC) [8], previstos pela legislação para 1) encerrar a persecução cível de determinadas infrações; 2) impedir a continuidade da situação de ilegalidade ou de prejuízo ao interesse público; e 3) reparar o dano causado e reverter benefícios indevidamente obtidos.
Os TACs são instrumentos administrativos que estruturalmente se assemelham aos acordos de leniência, ainda que firmados em outros âmbitos, como no caso de infrações a direitos difusos ou coletivos, com a finalidade ressarcitória. Na ocasião, demonstramos que a jurisprudência do Carf é pacífica e uníssona no reconhecimento da dedutibilidade das multas compensatórias devidas em decorrência dos TACs, a exemplo dos acórdãos nº 1201-002.665 e 1301-006.033.
De fato, considerando que a finalidade da multa do acordo de leniência seja viabilizar de forma voluntária a absorção da vantagem indevida, i.e., do acréscimo patrimonial que decorreu dos atos ilícitos, reestabelecendo uma situação patrimonial anterior às infrações, negar a dedução da multa geraria um “duplo efeito de absorção”, alterando a proporcionalidade da sanção estabelecida, frente aos parâmetros e princípios estabelecidos pela legislação que autoriza esse acerto, e adentro na tributação do próprio patrimônio do contribuinte.
De todo modo, trata-se de uma decisão nova, que diz respeito diretamente ao desenvolvimento da compreensão nacional a respeito da dimensão e conteúdo normativos do princípio da renda líquida objetiva, que deverá repercutir nas discussões futuras a respeito da dedutibilidade de gastos relacionados a atos ilícitos [9].
- Esse artigo foi elaborado durante o período de estadia do autor como pesquisador visitante no Max-Planck-Institut für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen, em Munique, e o autor reconhece e agradece o amplo apoio institucional recebido.