O setor da tecnologia da informação desempenha um papel crucial no desenvolvimento econômico e social, com empresas dependentes de fornecedores de serviços de TI para gerenciar seu crescimento financeiro, sistemas críticos e dados sensíveis.
Houve um crescimento de 495% nos serviços digitais no Brasil entre 2005 e 2023, superando a média global de 313%. Esse avanço é impulsionado pela digitalização e pela demanda por serviços como contabilidade e desenvolvimento de software.
A Organização Mundial do Comércio vê esse setor como uma oportunidade para países emergentes expandirem suas exportações, de forma que tecnologias como a inteligência artificial têm facilitado a entrega desses serviços globalmente, abrindo caminho para que o Brasil se torne um líder no setor [1].
Contratos de serviços de TI são, portanto, instrumentos fundamentais para regular essas relações, estabelecendo direitos, deveres e penalidades. Um dos temas mais debatidos nesses contratos é a imposição de multas por descumprimento de cláusulas contratuais. Este artigo visa explorar a legalidade dessas multas à luz da legislação brasileira, examinando a sua validade, aplicabilidade e os desafios jurídicos envolvidos.
Natureza jurídica dos contratos de serviços de TI
Os contratos de prestação de serviços de tecnologia podem ser considerados atípicos, dada a sua natureza flexível e altamente técnica. No entanto, estão sujeitos aos princípios gerais do direito contratual brasileiro, tais como a autonomia da vontade, a função social do contrato e a boa-fé objetiva.
Em contratos entre empresas (B2B), é certo que prevalece a liberdade contratual, desde que não violem disposições legais imperativas. Já em contratos entre fornecedores de serviços de TI e consumidores finais (contratos B2C), o Código de Defesa do Consumidor (CDC) impõe limitações adicionais, especialmente no que se refere à proteção contra cláusulas abusivas.
Cláusulas penais e multas contratuais
As cláusulas penais, incluindo as multas contratuais, são estabelecidas no artigo 408 e seguintes do Código Civil brasileiro, tendo a função de garantir o cumprimento das obrigações contratuais, estipulando previamente o valor da indenização em caso de descumprimento por uma das partes.
No entanto, a legislação brasileira impõe restrições. De acordo com o artigo 412 do Código Civil, “o valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.” Isso significa que as multas contratuais devem ser proporcionais à obrigação que visam assegurar. Em contratos de serviços de TI, onde as obrigações podem envolver valores significativos ou serviços contínuos, a definição de uma multa proporcional é essencial para garantir sua validade, de forma a garantir o equilíbrio justo entre as partes.
Nos contratos firmados entre empresas (business-to-business — B2B), a liberdade contratual é um dos princípios norteadores. No entanto, essa autonomia não é absoluta, e a estipulação de multas deve seguir alguns limites legais e princípios gerais do direito, sempre com o objetivo de garantir um equilíbrio ideal entre as partes, de forma que a empresa contratada não insira cláusulas resolutivas abusivas, que favoreçam um certo enriquecimento ilícito por parte da mesma.
a. Proporcionalidade e razoabilidade
Embora o princípio da liberdade contratual prevaleça em relações empresariais, o valor da multa deve ser razoável e proporcional ao valor da obrigação principal. A multa não pode configurar um enriquecimento sem causa ou punição excessiva para a parte inadimplente. A proporcionalidade das multas em contratos B2B é especialmente relevante em contratos de serviços de TI, onde as obrigações podem envolver serviços contínuos ou complexos, numa clara relação de vulnerabilidade técnica (e muitas vezes econômica) entre as partes.
b. Artigo 412 do Código Civil
O artigo 412 do Código Civil brasileiro impõe uma limitação objetiva ao valor das multas contratuais: “O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal”. Isso significa que as partes podem estipular multas, mas elas não podem ser superiores ao valor da própria obrigação principal que visam garantir. Em contratos empresariais de TI, que podem envolver valores altos ou serviços essenciais, o não cumprimento dessa regra pode levar à revisão judicial da multa, de forma, reitera-se, a garantir o equilíbrio na relação anteriormente pactuada.
c. Possibilidade de revisão judicial
Mesmo em contratos entre empresas, as cláusulas penais, incluindo multas, estão sujeitas à revisão judicial. Caso a multa seja considerada abusiva ou desproporcional, o Judiciário pode reduzir o valor com base no artigo 413 do Código Civil, que permite a revisão da penalidade quando esta for manifestamente excessiva em relação à obrigação descumprida.
d. Exemplo prático
Imagine um contrato entre duas empresas de TI, em que uma presta serviços de manutenção de software para a outra. Se o contrato estipula uma multa de 50% do valor total do contrato por qualquer atraso na entrega de um patch de correção, essa multa pode ser considerada desproporcional, especialmente se o atraso gerar um prejuízo muito inferior à multa. Nesse caso, o Judiciário pode intervir para ajustar a penalidade a um patamar mais razoável.
e. Limitação voluntária
Além dos limites legais, as partes em contratos entre empresas podem voluntariamente optar por estabelecer cláusulas de limitação de responsabilidade, restringindo o valor das multas a um percentual específico do valor total do contrato. Essa prática é comum em contratos de serviços de TI para evitar disputas sobre a extensão das penalidades e garantir maior previsibilidade.
Em suma, nos contratos entre empresas, a estipulação de multas deve seguir os princípios de razoabilidade e proporcionalidade, respeitando os limites estabelecidos pela legislação. A cláusula penal, embora importante para garantir o cumprimento das obrigações, não pode ser usada como ferramenta de punição desmedida.
As limitações impostas pelo Código de Defesa do Consumidor (artigo 51, IV) também se aplicam, especialmente em contratos firmados entre empresas de TI e consumidores finais. O CDC proíbe cláusulas que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada ou que estipulem multas excessivas. Isso é particularmente relevante em contratos de fornecimento de serviços como armazenamento em nuvem, suporte técnico e desenvolvimento de software.
Exemplo prático: Um fornecedor de serviços de TI estipula uma multa de 50% do valor do contrato em caso de atraso na entrega de um software. Embora tal cláusula possa ser aceitável entre grandes corporações, a mesma cláusula em um contrato de consumo pode ser considerada abusiva.
Jurisprudência sobre a validade de multas em contratos de TI
A jurisprudência brasileira tem consolidado a aplicação do princípio da proporcionalidade nas cláusulas penais. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu em diversos casos que a multa contratual deve refletir o prejuízo real sofrido pela parte inocente, sob pena de ser considerada abusiva.
No julgamento do Recurso Especial nº 1.126.739, o STJ reduziu uma multa contratual considerada desproporcional, argumentando que a finalidade da multa é ressarcir a parte prejudicada, e não puni-la de forma excessiva.
Em contratos de TI, essa jurisprudência é particularmente relevante, pois muitas vezes os prejuízos podem ser intangíveis (perda de oportunidade de negócio, por exemplo), o que dificulta a quantificação da multa (nosso o destaque):
“APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL CC INEXIGIBILIDADE DE DÉBITO – PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE SOFTWARE – Denúncia do contrato antes do término de vigência que deveria ser realizada com seis meses de antecedência – Multa no valor integral do contrato que mostra-se abusiva, visto que fixada determinado o pagamento de 6 mensalidades – Redução equitativa da multa nos termos do art. 413 do CC – Prazo de 30 dias que mais assemelha-se às práticas do mercado – Apelo desprovido.” (TJ-SP; Apelação Cível 1062744-05.2023.8.26.0100; relator (a): Almeida Sampaio; Órgão Julgador: 25ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional I – Santana – 1ª Vara Cível; data do julgamento: 28/8/2024; data de registro: 28/8/2024)
De acordo com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJ-DF), uma multa de 40% para o cancelamento de um contrato já é considerada abusiva e nula.
A multa contratual é considerada abusiva quando excede 10% do valor do contrato vigente, em casos protegidos pelo Código do Consumidor (CDC). O CDC proíbe que os fornecedores estabeleçam multas que coloquem os clientes em desvantagem exagerada.
Para calcular a multa, deve ser considerada a proporção do tempo restante do contrato. Por exemplo, se já foram cumpridos 2/3 do contrato, apenas 1/3 do valor total da multa pode ser cobrado.
As cláusulas abusivas são determinações contratuais que dão vantagens exageradas aos fornecedores, desrespeitando as proteções e garantias previstas no CDC.
Com a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), as multas em contratos de serviços de TI ganharam uma nova dimensão. As empresas de TI, responsáveis pelo tratamento de dados pessoais, estão sujeitas a multas regulatórias em caso de vazamento de dados ou falhas de segurança, que podem ser repassadas contratualmente às partes envolvidas.
No entanto, essas multas devem ser cuidadosamente analisadas sob o prisma da proporcionalidade e razoabilidade, uma vez que podem representar uma dupla penalização para a empresa, além de ferir a boa-fé contratual.
A aplicação de multas em contratos de serviços de TI é uma prática comum e necessária para assegurar o cumprimento de obrigações. Contudo, é fundamental que essas multas respeitem os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, para evitar a sua invalidação judicial. A crescente regulamentação, como a LGPD, impõe novas responsabilidades às empresas, que devem ser refletidas de forma adequada em seus contratos.
Em resumo, a (i)legalidade das multas em contratos de TI dependerá da análise do equilíbrio entre os direitos e obrigações das partes, bem como da conformidade com a legislação aplicável. Para evitar problemas, é recomendável que as empresas revisem suas cláusulas contratuais com frequência e busquem assessoria jurídica especializada.
Fonte: Conjur