O cidadão brasileiro tem assistido, nos últimos meses, aos passos apertados do governo e do Congresso rumo à aprovação dos projetos de lei da reforma tributária do consumo. Em linhas gerais, a pretensão declarada da reforma é a simplificação do complexo sistema tributário brasileiro, com a progressiva supressão dos cinco mais controvertidos tributos em vigor (ICMS, PIS, Cofins, ISS e IPI) e sua substituição por três novos tributos, IBS, CBS e IS.
Em meio aos relevantes temas trazidos pelos projetos de lei da reforma tributária do consumo, foram inseridas alterações pontuais na legislação de dois tributos não diretamente relacionados ao consumo, o Imposto Causa Mortis e Doações (ITCMD) e o Imposto Sobre Transmissão Onerosa de Bens Imóveis (ITBI).
Sobre tais alterações, estão em grande destaque o estabelecimento da progressividade, a criação de novos fatos geradores e aumento da alíquota do ITCMD, que vai impactar nos inventários e doações.
Ainda sobre o Imposto Causa Mortis, tem gerado polêmica a possibilidade de tributação de heranças do exterior, planos de previdência e a grande novidade: tributação de operações societárias por meio de equiparação a doações. O tema da tributação de dividendos desproporcionais, por si só, merece um estudo aprofundado quanto à legalidade dessa hipótese de incidência.
Em paralelo a essas discussões, um olhar atento rapidamente identifica que o PLP introduz mudanças na legislação de regência do ITBI e ITCMD que terão por efeito a supressão de conquistas dos contribuintes no Judiciário, por meio de teses firmadas em recursos repetitivos.
Começando pelo ITCMD, a tese firmada em julgamento do Tema 1.048 pela 1ª Seção do STJ, em maio de 2021, definiu que, no imposto referente à doação não oportunamente declarada pelo contribuinte ao fisco estadual, a contagem do prazo decadencial teria início no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado.
O entendimento foi fruto de um longo período de controvérsia envolvendo fiscos estaduais e contribuintes e, ao fim, prestigiou-se a regra vigente no Código Tributário Nacional. O julgamento trouxe segurança ao Contribuinte quando estabeleceu limites temporais para a possibilidade de o Fisco Estadual identificar, por iniciativa própria, fatos geradores do tributo.
Em sentido diverso, o PLP 108/2024 estabeleceu como momento da ocorrência do fato gerador a data do ato ou negócio jurídico, nos casos em que não houver formalização. O texto base indicou que o prazo de decadência, nestes casos, será contado a partir da data do conhecimento do ato ou negócio jurídico pela administração tributária estadual ou distrital.
Na prática, esta mudança de critério de contagem pode implicar na impossibilidade do decaimento do direito do Fisco Estadual “descobrir” e lançar o imposto sobre operações sujeitas ao ITCMD. A legislação também fala em convênios para troca de informações para levantamento de dados sobre doações não declaradas.
Outra alteração do texto base que conflita com o conteúdo de acórdãos proferidos em recursos repetitivos diz respeito ao momento da ocorrência do fato gerador do ITBI.
O PLP 108/2024 prevê o acréscimo do artigo 35-A ao CTN, para estabelecer como elemento temporal do fato gerador do ITBI o “momento da celebração do ato ou título translativo oneroso do bem imóvel”.
O dispositivo vai de encontro ao conteúdo do Tema 1.124, em que o Supremo Tribunal Federal firmou a seguinte tese: “O fato gerador do imposto sobre transmissão inter vivos de bens imóveis (ITBI) somente ocorre com a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o registro”.
A mudança introduzida pelo projeto de lei pode conferir legitimidade à prática dos municípios e órgãos registrais imobiliários de exigir o pagamento do ITBI antes do ato de averbação da transmissão, com a mera assinatura de escritura de promessa de compra e venda ou cessão, por exemplo.
Este tipo de operação costumava gerar grandes discussões entre usuários dos serviços registrais e prefeituras e foi solucionado pela resolução do Tema 1.124. O texto trazido pela Reforma reacende a discussão e viabiliza o restabelecimento desta prática, bastante questionável do ponto de vista jurídico.
Ainda com relação ao ITBI, outra alteração introduzida com o Projeto de lei da Reforma pode ter repercussão conflitante com o conteúdo de uma conquista dos contribuintes no STJ. Trata-se da presunção de legitimidade e veracidade do valor adotado nas transações declaradas pelos contribuintes.
O PLP 108/2024 acrescenta artigo 38-A ao CTN, estabelecendo que se considera valor venal, pra fins de ITBI, o valor de referência ou o valor da transmissão, o que for maior, do bem imóvel ou dos direitos reais sobre bem imóvel.
A nova disciplina determina que o valor de referência será estabelecido por meio de metodologia específica para estimar o valor de mercado dos bens imóveis, nos termos de legislação municipal ou distrita e será fixado anualmente nos termos da legislação municipal ou distrital.
Quer dizer, com essa modificação, deixa de ter lugar o conteúdo do Tema 1.113, que definiu que o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, somente ilidível pelo Fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio.
No julgamento deste tema, o STJ estabeleceu que os municípios não poderiam arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por si estabelecidos unilateralmente. O PLP traz entendimento contrário, dando legitimidade à conhecida pauta fiscal e, uma vez mais, suprime um entendimento favorável aos contribuintes.
Muito ainda há que ser debatido nos passos seguintes da aprovação da reforma tributária. Entre os pontos de atenção, a invalidação de entendimentos historicamente firmados nos tribunais superiores, em regime de recursos repetitivos, em favor dos contribuintes deve ser considerada com toda cautela em prol da manutenção da segurança jurídica.
Fonte: Conjur