Não será preciso esperar o fim do julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, para se testemunhar o impacto que o julgamento do processo irá exercer na avaliação de outras ações penais pelo Supremo Tribunal Federal. Em sessão extraordinária, ocorrida na manhã desta quarta-feira (17/10), ficou claro, mais uma vez, que o julgamento do chamado mensalão não só desgastou e estremeceu a relação entre os ministros como passou a ser citado como referência na análise de matérias penais.
Com a pauta de julgamento da manhã desta quarta-feira preenchida por Embargos de Declaração em ações penais e inquéritos para a instauração de processos, o clima voltou a ficar tenso. Desta vez entre os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.
O mote da discussão foi o julgamento do Inquérito 2.704, que requeria a instauração de Ação Penal contra o deputado federal Anthony Garotinho e mais três réus por compra de votos de eleitores em campanha eleitoral do candidato Geraldo Pudim para para a prefeitura de Campo de Goytacazes (RJ) em 2004.
Os ministros julgavam questão de ordem sobre se seria ou não da competência do STF apreciar o pleito. Apenas Anthony Garotinho, por exercer o mandato de deputado federal (2011-2014), ainda dispõe de prerrogativa de função para ser julgado pelo Supremo. Os outros três réus, Geraldo Pudim (Geraldo Roberto Siqueira de Souza), Carlos Eduardo Azevedo Miranda e Êrve Júnior Gonçalves de Almeida, não exercem mais ou nunca exerceram mandados que justifiquem a prerrogativa de foro.
Os réus são acusados de protagonizar um esquema de compra de votos no município, ao terem pago, segundo o Ministério Público Federal, R$ 50 a cada um dos 35 mil eleitores — cerca de 10% dos cadastrados no município fluminense de Campo de Goytacazes.
O Plenário, por nove votos a um, acabou rejeitando o recebimento da denúncia. Porém, antes de observar o mérito do que julgaram, os ministros debateram sobre se o processo deveria ou não ser desmembrado.
A relatora do inquérito, ministra Rosa Weber, votou no sentido de rejeitar o pedido de desmembramento feito por advogados dos réus. Entendeu que remanesce a competência da corte para julgar o pleito em razão da conexão entre as condutas imputadas aos réus. Contudo, a relatora propôs o desmembramento em relação apenas ao réu Carlos Eduardo em razão de problemas relacionados ao cerceramento do direito de defesa do réu.
Coube ao ministro Dias Toffoli abrir a divergência ao acolher a arguição de incompetência do Supremo. Foi o ministro também o primeiro a trazer ao debate o julgamento da AP 470, criticando o fato de o Supremo julgar aquela ação a despeito de apenas três réus terem prerrogativa de foro.“No caso da Ação Penal 470, não acompanhei a divergência, porque entendi que já havia sido votada a matéria antes de eu integrar a corte. Devemos, no entanto, julgar aqui exclusivamente aqueles que tem foro de função”, disse Toffoli.
O ministro acolheu o desmembramento da ação para os três réus que não têm prerrogativa de foro e afirmou ainda que a preocupação com a prescrição das penas em ações do tipo não pode servir de baliza para que o Supremo decida julgar processos análogos. “A mim não me preocupa a questão da prescrição. Esta é uma questão objetiva da lei. Me preocupa o julgamento apenas daqueles que têm prerrogativa de função. Se prescrevesse em um ano, nós iriamos deferir? E se prescrevesse semana que vem então não se defere?”, provocou o ministro. “Não fosse Anthony Garotinho, receberíamos a denúncia mesmo sem ser o foro competente, mesmo sem ser o juiz natural?”, questionou ainda Toffoli.
O ministro Gilmar Mendes observou, porém, que, em casos onde seja verificado o entreleçamento de ações e se constate o risco de decisões controversas por instâncias inferiores, cabe, sim, julgar os demais réus sem prerrogativa de função.
“No caso de crimes plurais e de quadrilha, estamos tendo incongruências”, observou Gilmar Mendes. “É bom que se diga também que não cabe falar em recurso junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos por não se observar o direito ao duplo grau de jursidição, pois consta uma ressalva: não há violação ao principio do juiz natural quando a decisão é tomada pela corte suprema de Justiça do país”, apontou o ministro. Gilmar Mendes se referia à manifestação de alguns advogados dos réus da AP470, que, após a condenação de seus clientes, declararam que iriam recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Acompanharam a divergência de Dias Toffoli, os ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio. Os três acabaram vencidos pelos votos dos colegas Cármem Lúcia, Gilmar Mendes e Ayres Britto, que votaram com a relatora, ministra Rosa Weber. O ministro Luiz Fux se se declarou impedido. Os ministros Celso de Mello e Joaquim Barbosa não estavam presentes.
Ironicamente, contudo, o processo acabou desmembrado durante o julgamento de mérito, quando a maioria dos ministros não reconheceu a denúncia contra Anthony Garotinho. Desse modo, o inquérito sobre os outros três réus acabou remetido à primeira instância.
Ao discutirem se cabia a instauração da Ação Penal frente às denúncias, a maioria dos ministros julgou que faltavam evidências justo contra Anthony Garotinho, o único réu com prerrogativa de foro. Desse modo, o Plenário se viu obrigado a desmembrar o caso referente aos que não gozam da prerrogativa, em concordância aos votos dos ministros vencidos.
Originalmente, o inquérito foi remetido ao Supremo em função do mandato de parlamantar de Geraldo Pudim. Porém, durante a invetigação, o mandato do réu foi encerrado, e Garotinho foi eleito.
Sensibilidade a críticas
Depois que a ministra Cármen Lúcia votou com a relatora no sentido de entender que, para a melhor “compreensão de todos os fatos” o processo não deveria ser desmembrado, coube ao ministro Ricardo Lewandowski criticar duramente o fato do Supremo Tribunal Federal julgar réus sem prerrogativa de função em ações do tipo. “Não se pode banalizar a atração que exerce a prerrogativa de função, só porque existe conexão. “Estamos gerando uma hipertrofia jurisdicional ao julgar casos de competência tipicamente de instâncias inferiores”, disse Lewandowski.
O ministro, que é revisor do processo do mensalão, criticou ainda o fato de se “paralisar a suprema corte por três meses por conta de três réus”, no caso da AP 470, concordando com o ministro Dias Toffoli ao dizer que “a prescrição é um dado de natureza absolutamente objetiva”.
“A denúncia [do Inquérito 2.704] foi apresentada no dia 29 de julho de 2009. Portanto, este inquérito tramita nesta suprema corte há mais de três anos. E, como foi levantado da tribuna, os fatos ocorreram há mais de oito anos”, observou Lewandowski. “Se, por ventura, essa ação vier a ser julgada, ela será julgada dez anos depois, na melhor das hipóteses, da ocorrência dos fatos. Isto, ao meu ver, não condiz com o melhor Direito. A prescrição é um direito do réu em face da inércia do Estado em levar a cabo a persecução penal”, disse.
“Entendo, na medida em que atraímos artificiosamente a competência de réus que tem o direito de serem julgados na primeira instância, para a jurisdição dessa suprema corte, estamos, sim, ofendendo, o princípio constitucional do juiz natural e, mais, ao direito ao duplo grau de jurisdição”, disse. O ministro discordou ainda da conclusão de que o Tratado de São José da Costa Rica dispensa o duplo grau de jurisidição quando o julgamento ocorre pelo tribunal constitucional do país. Para Lewandowski, isso só é válido no caso dos réus com prerrogativa de função.
“Tenho uma visão de longo prazo, se nós persistirmos nessa sistemática, qualquer que seja a justificativa, e encontrariamos várias delas inclusive na legislação infraconstitucional, no Código de Processo Penal, a médio prazo, inviabilizaremos os trabalhos desta suprema corte”, disse o ministro Ricardo Lewandowski ao acolher a preliminar pelo desdobramento.
O ministro Gilmar Mendes rejeitou a conclusão do colega. Afirmou que, tendo em vista a “discrepância de juízos”, cabe trazer à competência do Supremo o julgamento de réus sem prerrogativa. “Não há inconstitucionalidade nem ilegitimidade na decisão que consagra a competência quando se verificar esse tipo de entrelaçamento. Se fôssemos levar ao extremo e afirmar que o Supremo só julga casos daqueles que têm prerrogativa de foro expressa no texto constitucional, eliminariamos até os casos singelos de coautoria”, disse Gilmar Mendes.
“É preciso que haja um critério em relação ao desmembramento. A própria Ação 470, acredito, é um belo exemplo que, em casos vitais, não deve haver desmembramento, porque vimos quão intricada era a relação, como os vasos se comunicavam”, disse Gilmar Mendes. O ministro disse, ainda, que a AP 470 é irrepetível, dada sua dimensão e peculiaridades e citou o “caso Maluf”, sob a relatoria de Ricardo Lewandowski, como exemplo de que o desmembramento potencial prejudicaria a análise do mérito daquele processo.
O ministro Ricardo Lewandowski entendeu a referência de Mendes ao caso Maluf como uma crítica à sua pessoa. Ao pedir um aparte, o clima ficou tenso entre ambos. Veja o diálogo travado:
Lewandowski – Como sempre, Vossa Excelência, digamos assim, de forma professoral, se compraz em encontrar contradições em meu voto.
Gilmar Mendes – Que isso? De forma nenhuma…por favor…
Lewandowski – Essa não é a primeira vez…
Gilmar Mendes – Por favor…
Lewandowski – Na verdade, nós aqui não estamos numa academia. Estamos numa suprema corte, onde todos são iguais. Aquele caso [Maluf] guardava especificidades muito claras, porque os réus mantinham contas conjuntas no exterior. Caso de marido e mulher casado em comunhão de bens [sobre Paulo Maluf e a esposa]. Não havia realmente naquele caso como desmembrar.
Gilmar Mendes – Claro, mas eu não me…
Lewandowski – Não venha apontar incongruências porque eu também poderei apontar várias incongruências que se registraram no histórico dessa corte.
Gilmar Mendes – O senhor não só pode, como deve apontá-las.
Lewandowski – Se Vossa Excelência insistir nesse aspecto em me corrigir… Não sou aluno de Vossa Excelência. Somos juízes e pares. Vossa Excelência se atenha ao seu voto. Eu não vou admitir nenhuma vez mais. Que isso fique bem claro. Ou vamos travar realmente uma comparação de votos e isso não vai ficar bem.
Gilmar Mendes – Vossa Excelência pode fazer a comparação que quiser e não irá impedir de me manifestar em Plenário em relação a pontos em que nós estamos discutindo.
Lewandowski – Eu não sou aluno de Vossa Excelência.
Gilmar Mendes – Ninguém disso isso.
Lewandowski – Sou professor na mesma categoria de Vossa Excelência.
Gilmar Mendes – Não neguei isso também.
Lewandowski – …numa universidade de renome. Não vou aceitar lições.
Gilmar Mendes – Vossa Excelência me interprete como quiser. O que foi dito aqui de forma muito clara e objetiva, e todos ouviram, é que há decisões, várias, tomadas por todos nós, e nós compartilhamos e discutimos essas questões. Agora se não se pode fazer referência…
Lewandowski – Não…não…
Gilmar Mendes – Vossa Excelência está se revelando muito sensível […] Indica exatamente que devemos ter o hábito de conviver com críticas.
Lewandowski – Críticas? Então Vossa Excelência admite que está fazendo uma crítica. Aqui não é válida. Aqui ninguém é aluno de ninguém.
Gilmar Mendes – Entenda como quiser. Eu vou proceder com o meu voto…
Lewandowski – Vossa Excelência não faça crítica ao meu voto.
Nesse ponto da discussão, o presidente da corte, ministro Ayres Britto, tentou intervir.
Ayres Britto – Temos dito aqui que esse contraditório…Chamemos de argumentativo…Muitas vezes é necessário.
Lewandowski – Não é isso presidente…O argumento é ad hominem…Não vou admitir isso. Se o ministro estiver inconformado com minha manifestação, que responda no plano teórico.
Gilmar Mendes – E assim estou fazendo. E os precedentes da corte devem ser referidos.
Julgamento de mérito
Apesar da longa discussão sobre o desmembramento e do Plenário decidir, por quatro votos a três, em não desmembrá- lo, o recebimento da denúncia contra Anthony Garotinho acabou rejeitado pela maioria dos ministros, por nove votos a um, vencida a relatora. Dessa forma, o inquérito acabou involuntariamente desmembrado. Os outros três réus serão julgados em primeira instância.
Apenas a relatora, ministra Rosa Weber, recebeu a denúncia contra Garotinho, confirmado a ausência de vícios de investigação apontados pelas defesas do réus. Os advogados, da tribuna, afirmaram que houve abuso na coleta de provas durante a condução da diligência, que o oficial de Justiça agiu com parcialidade ao recolher as provas, porque era ligado ao grupo político antagonista ao réu e que houve ainda a falta de individualização dos objetos apreendidos.
O ministro Dias Toffoli abriu divergência em relação ao voto da relatora. Afirmou que, na denúncia, “não há sequer a indicação de uma co-participação” por parte de Garotinho. Todos os outros ministros acompanharam Toffoli. A ministra Cármem Lúcia observou que as referências a Garotinho, na peça de acusação, remetemv sempre a grupos e apenas ao fato de o réu ter participado de reuniões.
O ministro Ricardo Lewandowski, mais uma vez, usou de seu voto para criticar a condução da Ação Penal 470, o processo do mensalão. “Constato que a malfadada teoria da domínio do fato fez escola na Justiça Eleitoral. Está se alastrando para outros processos”, disse o ministro ao afirmar que Garotinho foi denunciado apenas pelo fato de presidir o PMDB à época.
Lewandowski afirmou também que o Ministério Público citou até mesmo “o próprio vulto da quantia usada no esquema de compra de eleitores” para “demonstrar” que a compra de votos não poderia ocorrer sem a participação de Garotinho.
Gilmar Mendes também acompanhou a divergência aberta por Toffoli. “A denúncia não logrou em identificar, após um longo inquérito, a participação plausível de Garotinho nos fatos”, disse.