O sucesso das arbitragens no país chamou a
atenção do Fisco. A Receita Federal já notificou pelo menos duas câmaras
arbitrais no Rio de Janeiro sobre procedimentos de fiscalização abertos
para apurar valores recebidos por árbitros. Na montanha de documentos
requerida estão todas as sentenças arbitrais proferidas entre 2008 e
2011, o que preocupa especialistas no ramo. Para eles, o intuito parece
não ser apenas o de fiscalizar as câmaras, mas abastecer o Fisco de
informações de terceiros que podem ser úteis em outras apurações. Como a
regra geral é que as arbitragens sejam sigilosas, as empresas que delas
participam teriam menos receio de mostrar, nos processos, detalhes que
não contariam se questionadas diretamente pelos fiscais.
A Câmara
FGV de Conciliação e Arbitragem do Rio de Janeiro, uma das mais
procuradas do país, foi a primeira a ser notificada. O processo começou
logo após o Carnaval. No Termo de Fiscalização, a Receita exigiu a
entrega das sentenças com a ameaça de multá-la em caso de desobediência,
por descumprimento de obrigação acessória. A Fundação Getulio Vargas,
patrocinadora da Câmara, já disponibilizou todos os documentos ao Fisco.
Procurado, o diretor jurídico da Câmara, Pedro Paulo Cristófaro,
preferiu não dar declarações a respeito. O Centro Brasileiro de Mediação
e Arbitragem (CBMA), também com sede no Rio, foi outro fiscalizado.
O
alto valor recebido em honorários pelos árbitros é o que parece ter
acendido o sinal de alerta da Receita, pois indicaria grandes valores de
transações levadas a julgamento. Nas notificações, o Fisco pede às
câmaras que informem valores recebidos pelas partes e seus advogados nos
processos terminados.
Outra preocupação é com o pagamento de
contribuições previdenciárias pelas empresas, incidentes sobre os altos
salários de executivos. É comum esses profissionais serem remunerados
com planos de previdência privada, ações na Bolsa de Valores e outros
programas de marketing de incentivo que reclamam a não incidência das
contribuições ao INSS. Como conflitos envolvendo demissões de altos
executivos costumam ser resolvidos em arbitragem e não em ações na
Justiça, obter essas decisões permitiria à Receita apurar possíveis
dribles previdenciários.
Tributaristas temem ainda uma investida
sobre planejamentos tributários de terceiros. De posse de sentenças
arbitrais, o Fisco teria mais munição para desqualificar planejamentos
tributários ao avaliar operações societárias — como fusões, cisões e
compra de participações acionárias — consideradas sem outro propósito
que não seja o de somente economizar em tributos. As informações obtidas
nas câmaras serviriam, por exemplo, para contestar explicações dadas
pelas empresas em julgamentos administrativos que impugnam autuações
fiscais.
No dia 14 de fevereiro, advogados e representantes da
arbitragem brasileira se reuniram no Rio de Janeiro com nomes da cúpula
do Ministério da Fazenda para discutir os pedidos. Estiveram presentes o
secretário da Receita Federal, Carlos Alberto Barreto; Ana Lúcia
Pereira, presidente do Conselho Nacional das Instituições de Mediação e
Arbitragem (Conima); e Carlos Suplicy de Figueiredo Forbes,
vice-presidente do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBar), além da
ministra Ellen Gracie, aposentada do Supremo Tribunal Federal e agora
advogada e árbitra — que pediu a audiência ao Fisco. Defendendo as
entidades, ela solicitou o encontro para ter esclarecimentos sobre as
fiscalizações.
A ministra ouviu a explicação de que os fiscais
também têm obrigação de manter o sigilo, e que, por isso, a entrega das
informações não viola qualquer compromisso de confidencialidade em
relação a terceiros. O argumento foi o mesmo usado em 2010 por Ellen
Gracie em seu voto — vencido —, quando era ministra do Supremo, a favor
do Fisco, pela transferência de dados de correntistas de bancos sempre
que solicitados pela Receita, sem ordem judicial. O debate aconteceu no
julgamento do Recurso Extraordinário 389.808, no qual a corte concluiu,
em apertada contagem de cinco votos a quatro, que a quebra do sigilo
bancário — ou transferência de informações, como chama o Fisco — só pode
ser decretada por ordem judicial. “Tratando-se do acesso do Fisco às
movimentações bancárias de contribuinte, não há que se falar em vedação
da exposição da vida privada ao domínio público, pois isso não ocorre.
Os dados ou informações passam da instituição financeira ao Fisco,
mantendo-se o sigilo que os preserva do conhecimento público”, declarou a
ministra em seu voto.
Ellen Gracie afirmou, na época, que o
artigo 198 do Código Tributário Nacional veda a divulgação, por parte da
Fazenda Pública ou dos seus servidores, “de qualquer informação obtida
em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito
passivo ou de terceiros sobre a natureza e estado de seus negócios ou
atividades”. Essa proibição se designa “sigilo fiscal”, explicou.
A
Receita ainda se fundamenta na Lei 10.174/2001 e na Lei Complementar
105/2001, regulamentada pelo Decreto 3.724/2001, que, segundo interpreta
o Fisco, lhe dão autorização para obter dados mesmo sem processo
judicial.
Quebra de sigilo
“Pediram tudo, sem um critério”, conta Carlos Forbes. “Por
isso, o foco da fiscalização ainda é um mistério, não conseguimos
entender.” Outro aspecto intrigante em relação aos objetivos do Fisco é
que, devido a um convênio com a Câmara de Comercialização de Energia
Elétrica, boa parte das arbitragens feitas pelo centro da FGV Rio
envolvem órgãos públicos, o que exige que elas sejam divulgadas. “Não
são comuns contratos de empreitada ou disputas societárias”, explica
Forbes.
Segundo ele, os procedimentos arbitrais não foram pinçados
pelos fiscais, mas exigidos em massa, por período. “Ocorre que a
informação não é do centro, que só a administra. Se entrego informações
que não são minhas, mas de terceiros, não é o Fisco quem está quebrando o
sigilo, mas eu.”
A Lei 9.307/1996, que regulamenta a arbitragem
no Brasil, não prevê o sigilo obrigatório dos julgamentos. É o
regulamento de cada câmara que disciplina esse compromisso, por
delegação da lei. Porém, a confidencialidade é um princípio mundial do
instituto. Em artigo publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico,
a presidente do CBAr, Adriana Braghetta, listou previsões dessa
natureza no regulamento de entidades do Brasil e do exterior. “A
confidencialidade é regra nas arbitragens, seja por conta da previsão no
regulamento de arbitragem da instituição escolhida, seja por disposição
expressa na cláusula compromissória”, afirma no texto. “É uma
decorrência natural de a arbitragem ser um processo privado de solução
de disputas. Da mesma forma que as partes podem sentar numa mesa de
negociação e assinar um acordo sobre uma disputa envolvendo direito
patrimonial disponível e concordar em que tudo seja confidencial — o que
é absolutamente corriqueiro —, também podem levar essa disputa para
solução sigilosa no âmbito da arbitragem.”
A Lei Complementar
105/2001, no entanto, deu ao Fisco, em seu artigo 5º, o poder de exigir,
sem ordem judicial, informações bancárias de correntistas —
entendimento que, segundo o Fisco, é extensível às arbitragens. A norma é
questionada em pelo menos quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade
ainda não julgadas pelo Supremo, a principal delas da Confederação
Nacional das Indústrias.
“A Lei Complementar 105 autoriza a
Receita a pedir informações a terceiros, como bancos e cartórios. E a
Constituição e o Código Tributário Nacional dizem que terceiros são
obrigados a fornecer dados, desde que isso não viole sigilo
profissional. A pessoa jurídica não pode ter nada sigiloso, porque
precisa contabilizar tudo. E a Receita pode pedir a documentação
contábil em suas fiscalizações”, lembra a tributarista e ex-auditora da
Receita Mary Elbe Queiroz, presidente do Instituto
Pernambucano de Estudos Tributários. “O acesso é justificado para se
checar se a declaração prestada pelo contribuinte é verdadeira, além da
questão da isonomia, já que o trabalhador assalariado tem o imposto
descontado na fonte.”
Porém, segundo ela, o Fisco não pode quebrar
o sigilo de um contribuinte que sequer sabe que está sendo fiscalizado.
“É preciso abrir um procedimento fiscal, com intimação para as partes
investigadas.” A Receita Federal não respondeu aos pedidos de entrevista
da ConJur.