São intensas e frequentes as disputas entre médicos, enfermeiros e psicólogos sobre o que cada qual pode fazer pela saúde dos pacientes. Da mesma forma, professores de educação física e os de dança, de artes marciais ou yoga e mesmo fisioterapeutas lutam por fatias de mercado. Químicos brigam com farmacêuticos, biólogos com veterinários e agrônomos e, assim, vão enchendo os escaninhos da Justiça para que ela decida qual é o campo de atuação exclusivo de cada profissão.
Essas disputas são, na quase totalidade, encabeçadas pelos respectivos conselhos representativos profissionais. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), a maior parte dos litígios envolve a inscrição da pessoa jurídica ou de profissionais liberais nos órgãos de fiscalização. São empresas contestando a pretensão dos órgãos em fiscalizá-las – e cobrá-las por isso; bioquímicos, farmacêuticos, enfermeiros, fisioterapeutas e outros profissionais de alguma forma ligados à área biológica disputam espaços comuns; engenheiros de alimentos atuam como químicos e muitas outras áreas de intersecção.
Um exemplo: em 2002, o Tribunal garantiu que enfermeiros possam praticar a acupuntura (Pet 1.681/DF). O presidente do STJ à época, ministro Nilson Naves, negou o pedido do Conselho Federal de Medicina para impedir o Conselho de Enfermagem de incluir a prática no seu âmbito de fiscalização. “O médico é quem deve prescrever o procedimento como meio auxiliar de tratamento de doenças, mas o enfermeiro pode perfeitamente executá-lo”, decidiu o ministro. O STJ garantiu também a fisioterapeutas, em 2005, o direito de exercer a fisioterapia sem a chancela de um ortopedista. O campo profissional de ambas as profissões estaria delimitado e não seria necessária a supervisão médica para o funcionamento das clínicas. O médico diagnostica e avalia; o fisioterapeuta trata o problema. (Resp 693466/RS).
A cientista social Ceres Pizzato Favieira, que fez um estudo comparativo entre os conselhos de Medicina, Enfermagem e Farmácia, avalia que é comum a disputa de poder na área de saúde, fato já constatado nos tribunais brasileiros. “As antigas profissões não querem perder poder que já adquiriram, retroceder em fronteiras já conquistadas, abrir espaço para novas profissões”, analisa em tese apresentada sobre o tema. O professor de marketing da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Sólon Cordeiro de Araújo chegou à mesma conclusão. Ele acredita que o conhecimento hoje é multidisciplinar e, quanto mais permeabilidade houver, melhor para a sociedade. Ele reconhece que há uma dificuldade natural em delimitar o território das profissões, especialmente em casos em que o profissional tem um leque de conhecimento que lhe permite transitar por várias áreas.
Interação do conhecimento facilita atuação
O professor Sólon cita como exemplo de profissões que assimilam diversos conhecimentos a Agronomia, que tem fortes interações com a Química e a Biologia. “Um laboratório de solo pode muito bem ser operado por um agrônomo, mas, por força de lei, tem que ter um químico como técnico responsável”, afirma o professor no artigo denominado “Os Conselhos Profissionais e o Engessamento do Conhecimento”. A dificuldade que o consultor encontra na prática chega ao STJ com outra indagação. Saber se determinado profissional ou empresa devem estar submetidos à fiscalização do conselho profissional X ou Y. Ou ainda saber se alguém está ou não exercendo uma atividade irregular. Pela jurisprudência, em regra, alguém só pode estar vinculado a um conselho e só atua com irregularidade quando se trata de profissões regulamentadas.
Num processo em que se discutia a obrigatoriedade de um clube recreativo manter químicos para tratar a água das piscinas, por exemplo, a Segunda Turma do STJ decidiu que poderia também o farmacêutico exercer tal atividade, conforme o Decreto 858.778/81. Dessa forma, não estaria o clube contrário às normas, já que a regra é se vincular unicamente a um único conselho (Resp 383.314/SC). A Turma também decidiu, em outro caso, que uma empresa de laticínios já vinculada ao Conselho de Medicina Veterinário não deveria ter o registro obrigatório no Conselho de Química, já que, em regra, não pode haver a sobreposição de registros (Resp 383879/MG).
Segundo o STJ, é a atividade básica ou a que se presta a terceiros que determina a qual entidade, conselho ou sociedade deve o interessado filiar-se, exatamente porque a regra é que se submeta a uma única fiscalização. Se a atividade básica da sociedade, por exemplo, for a prestação de serviços médicos e houver como atividade secundária um setor de fisioterapia, não é necessária a inscrição junto a um conselho relativa à última profissão. Em um dos casos julgados, o Tribunal decidiu que o Pronto Socorro Infantil Jorge de Medeiros, de Pernambuco, não precisava se inscrever junto ao Conselho de Enfermagem, pelo fato de já estar inscrito no Conselho de Medicina. A atividade primária seria o serviço médico; a enfermagem, o serviço meio. (Resp 232839).
A jurisprudência observa, no entanto, que os profissionais atuantes nas diversas áreas devem, sim, estar inscrito nos casos das profissões regulamentadas, independentemente da inscrição da pessoa jurídica.
Jurisprudência abarca casos de diversos conselhos
Com base na tese de que só a atividade fim determina o registro, o STJ aplicou decisões negativas a conselhos representativos de diversas profissões. Em uma delas, ficou estabelecido que uma empresa responsável por distribuir petróleo em Santa Catarina não precisava de registro junto ao Conselho de Química, por não desenvolver análise do produto como função principal (Resp 434926/SC). Uma empresa de beneficiamento de cereais também foi desobrigada de se inscrever junto ao Conselho de Agronomia pelo mesmo motivo (Resp 450932/SC). E foi negada ao Conselho de Medicina Veterinário do Rio Grande do Sul a prerrogativa de fiscalizar uma empresa destinada à criação de aves e suínos (Resp 130676/RS). A cada uma dessas vinculações fiscalizatórias incorre contribuição obrigatória ao respectivo conselho.
Daí disputas como a ocorrida entre os professores de educação física, fisioterapeutas, professores de yoga, capoeira, pilates, artes marciais e dança em geral. Valendo-se da delegação legal que lhe é atribuída, o ativo Conselho de Educação Física vem exigindo contribuição para permitir o funcionamento de inúmeras dessas academias e escolas. Em vários estados, estas estão funcionando sob mandado de segurança. As categorias representativas da dança e lutas em geral se uniram em um lobby que se saiu vitorioso na Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, em julho passado, ao aprovar o projeto de lei n. 1.371/07 que isenta todas elas de submeter-se à fiscalização dos conselhos regionais de Educação Física.
Decisões com justificativas semelhantes abrangeram também atividades como Administração e Economia. A Primeira Turma decidiu em 2005 que uma empresa dedicada à compra e venda de imóveis e administração de condomínios não precisava estar registrada junto ao Conselho de Administração do Rio Grande do Sul (Resp 59.378/PR) por já ter registro no Conselho de Corretores de Imóveis. Em outra decisão, a Segunda Turma decidiu que o fato de uma empresa distribuidora de títulos e valores mobiliários ter uma maioria de economistas em seu quadro não justificava supervisão do Conselho de Economia, já que já se submetia à fiscalização do Banco Central (Resp 59378/PR), assim como os estabelecimentos bancários (Resp 13981/DF).
Em importante decisão, a Segunda Turma do STJ também firmou o entendimento de que especialistas e pessoas jurídicas da área de Informática não se submeteriam à supervisão do Conselho de Administração. Segundo a decisão do STJ, a atividade preponderante do profissional de informática é a utilização de sistemas e aplicativos com base teórica, metodologias, técnicas e ferramentas próprias, de forma que a Resolução Normativa do Conselho Federal de Administração 125/92 do Rio Grande Sul, que pretendia cobrar anuidade da categoria, não encontrava amparo legal (Resp 488441/RS).
Sociedade se protege contra maus profissionais
Os conselhos profissionais são autarquias federais e existem no Brasil desde 1930, com a instituição da Ordem dos Advogados do Brasil. São extensões do poder público na fiscalização do exercício das mais diversas atividades em benefício da sociedade. Existem, por exemplo, o dos Economistas Domésticos (Lei n. 8.042/90), o de Museologia (Lei n. 7.287/84), o de Radiologia (Lei n. 7.394/95) e o de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (Lei n. 6.316/75). Tantos outros nasceram no Brasil, com a justificativa de resguardar a sociedade contra os maus profissionais.
Em regra, o exercício de uma profissão é livre. E, só em determinadas condições estabelecidas por lei, existem restrições a ele. Não valem, por exemplo, resoluções que implementam provas ou condições para obter registro junto aos órgãos representativos de classe. Em uma decisão de 2006, por exemplo, o STJ julgou um recurso no qual o Conselho Federal de Medicina Veterinária exigia a realização de exame nacional como requisito para habilitar-se junto ao órgão. A Primeira Turma entendeu que não havia previsão legal para essa condição ser implementada (Resp 797.343/GO). No mesmo sentido, o STJ decidiu que o Conselho Regional de Contabilidade extrapolou ao estabelecer a aprovação em exame de suficiência como requisito para o registro (Resp 503.918/MT).
A dúvida no exercício irregular existe sob múltiplas facetas. Um candidato que assume um cargo público, por exemplo, deve ou não estar inscrito em conselho? O STJ entende que, se um cargo não é privativo de determinada profissão, a inscrição em conselho não é necessária. Assim, negou a obrigatoriedade de um auditor fiscal estar filiado ao Conselho Regional de Contabilidade (Resp 926.372/RS). Um caso apreciado pelo Tribunal Regional Federal também chegou a ser curioso. Um profissional bacharel em uma área com pós-graduação em outra pode obter o registro nessa segunda para exercer o magistério e consequentemente a profissão? No caso concreto, a profissional, bacharel em Direito e com diploma de mestrado no exterior validado no Brasil teve o registro junto ao Conselho de Biblioteconomia.
O exercício irregular de uma profissão pode gerar, segundo a Lei de Contravenções Penais (Decreto-lei 3688) multa de quinze dias a três meses de prisão ou multa. Se o impedimento decorrer de uma decisão administrativa imposta por conselho ou ministério do trabalho, segundo o Código Penal, o infrator pode sofrer detenção de três meses a dois anos de prisão ou multa.