Será que os chineses finalmente estão pensando seriamente em afrouxar seus laços sobre o dólar – e substituir a divisa americana pelo yuan como moeda de reserva da economia mundial? Crescem as evidências de que sim.
Nos últimos dois meses, os líderes chineses vêm reclamando da perigosa dependência que o país tem do dólar. O governo tem US$ 2 trilhões em ativos em dólar, acumulados ao longo de anos de exportações aos Estados Unidos e aquisições maciças de títulos do Tesouro americano. Se o governo dos EUA não conseguir conter seu crescente déficit orçamentário, os treasuries e o dólar poderão se enfraquecer consideravelmente – e, como resultado, os chineses poderão ser os grandes perdedores.
Os chineses começaram a despertar atenção sobre a questão em março, quando o primeiro-ministro Wen Jiabao disse estar preocupado com uma possível queda dos ativos em dólares do país. Dez dias depois, o presidente do banco central chinês, Zhou Xiaochuan, sugeriu a substituição do dólar como moeda de reserva internacional. Uma ideia, disse Zhou, seria substituir o dólar por uma cesta de moedas supervisionada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
Os céticos afirmam que a China fala da boca para fora. Para eles, o dólar está enraizado demais como moeda internacional com os EUA sendo de longe a maior economia do mundo. De todo modo, os chineses estão agindo de maneira tão deliberada que mesmo que quisessem dar peso global maior ao yuan, não o fariam no curto ou médio prazo.
Finalmente, se os chineses quisessem colocar o yuan em competição com o dólar, eles teriam de transformar o yuan em moeda conversível cujo valor seria ditado pelo mercado, com operadores, investidores, governos e companhias de todas as partes do mundo comprando e vendendo livremente a divisa. Muitos investidores ocidentais afirmam que tal perda de controle nunca seria permitida pelo regime autoritário chinês. Isso significaria derrubar todos os tipos de barreiras comerciais e financeiras, dando aos investidores estrangeiros acesso aos mercados de títulos chineses.
Agora alguns observadores estão mudando o tom. As iniciativas financeiras da China nos últimos dois meses vêm convencendo especialistas ocidentais de que o governo do país pretende tornar o yuan livremente conversível em outras moedas dentro de alguns anos – o primeiro grande passo em direção a um confronto aberto com o dólar.
Por que as percepções começaram a mudar? No mês passado, o governo chinês concluiu o último de uma série dos chamados swaps cambiais – fornecendo yuans para outros bancos centrais para uso em transações comerciais com a China – com a Argentina, Hong Kong, Indonésia, Malásia, Coreia do Sul e outros países. Esses acertos teoricamente removeram qualquer necessidade desses parceiros comerciais usarem o dólar como moeda intermediária nos negócios com a China. Há duas semanas, os chineses denominaram um acordo comercial bilateral com o Brasil nas moedas dos dois países, em vez de em dólar; o valor do acordo não foi especificado. O valor dos outros acordos é de US$ 95 bilhões. O comércio entre EUA e China foi de US$ 333 bilhões em 2008.
Mas os chineses ainda enfrentam grandes obstáculos. Declarar a livre conversibilidade do yuan é um deles: os grandes bancos centrais seriam contrários a manter altas somas de qualquer moeda – a mais pura definição de uma moeda de reserva – se não puderem comercializá-la sem limitações. Outro é a ausência de um grande mercado para os bônus denominados em yuan.
Um sinal importante da aceitação como moeda de reserva seria se países ocidentais como os Estados Unidos adquirissem bônus denominados em yuan para vendê-los a taxas de mercado. Até agora, os bônus denominados em yuan vêm sendo vendidos apenas pelos bancos chineses e por bancos multilaterais como o Asian Development Bank (ADB) e a International Finance Corporation (IFC). E apenas na China.
Mesmo assim houve movimentação até mesmo neste aspecto na semana passada: o HSBC Holdings e o Bank of East Asia disseram que serão os primeiros bancos estrangeiros a ter autorização para vender bônus denominados em yuan na China.
Mas persistem as dúvidas de que os chineses conseguirão desafiar o dólar. O ex-presidente do Banco Central do Brasil Gustavo Franco jogou um balde de água fria na noção de que o Brasil e a China irão abandonar totalmente os negócios em dólar, chamando isso de “pura conversa fiada”. Outros concordam. “Por enquanto, o aspecto de porto seguro do dólar vem sobrepujando outras preocupações”, afirma Morris Goldstein, economista do Peterson Institute for International Economics de Washington. “Quando as pessoas precisam de liquidez, elas recorrem aos EUA.”
Mesmo assim, especialistas ocidentais sobre a China formaram mais ou menos um consenso de que os chineses estão num caminho inequívoco rumo a um desafio ao dólar. O que ainda falta, segundo muitos especialistas, é uma decisão política do país parar de agir à margem e partir para uma iniciativa decisiva.
Essa resolução pode estar sendo formada. Um funcionário do governo chinês disse em 20 de maio que o yuan poderá ser uma moeda de reserva importante até 2020. Zhang Guangping, vice-presidente da agência de Xangai da Comissão Reguladora Bancária da China, disse que essa data coincidiria com o cronograma da transformação de Xangai em um centro financeiro internacional. Transformar Xangai na capital financeira da China só teria significado se o yuan fosse conversível.
Entre aqueles que prevêem que os chineses poderão se movimentar mais rapidamente, está Nicholas Lardy, um especialista em China do Peterson Institute. Lardy diz que a ideia de tornar o yuan conversível não é nova: os chineses levantaram a hipótese pela primeira vez na década de 1990, mas ela foi abandonada por causa da crise econômica asiática em 1997. “Eles poderiam fazê-lo em dois ou três anos”, afirma Lardy. “Tendemos a subestimar até onde eles podem ir nas reformas de vários aspectos de seu sistema financeiro.”
Seja qual for o timing, uma iniciativa dessas seria dramática em termos da economia chinesa. O governo vem mantendo um controle rígido sobre o valor do yuan – muitos especialistas acreditam que ele está subvalorizado -, inclusive limitando quem pode convertê-lo em moeda forte e quantos dólares entram no país. “A China vem mantendo a moeda abaixo da taxa de compensação do mercado para ajudar seus exportadores”, afirma Brad Setser, especialista em câmbio do Conselho de Relações Exteriores.
Além disso, há a questão da imensa reserva da China em ativos em dólar. “Se os chineses pararem de comprar dólares, o valor de seus ativos vai cair”, diz Rachel Ziemba, uma analista da consultoria RGE Monitor, especializada em China.
Uma maneira de os chineses diminuírem a exposição aos ativos em dólar ao longo do tempo é mudar suas reservas dos títulos do Tesouro americano de longo prazo para prazos mais curtos. Essa mudança daria mais flexibilidade no afastamento do dólar. O “The New York Times” informou há duas semanas que os chineses parecem estar mantendo os níveis de posse dos ativos em dólar, transferindo suas posições para vencimentos de um ano ou menos – algo que ainda não haviam feito.