Em ano eleitoral, a ministra Delaíde Alves Miranda Arantes (foto) está em campanha. A magistrada do Tribunal Superior do Trabalho não quer votos para o pleito de outubro, mas é candidata a um prêmio oferecido pelo jornal O Globo a “brasileiros que contribuíram, com o seu trabalho e o seu talento, para mudar o país” em 2013. Na 11ª edição do Prêmio “Faz Diferença”, ela concorre na categoria de Economia com o empresário Jorge Paulo Lemann, sócio da Ambev, e com o diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, Roberto Azevêdo. Todos os nomes foram escolhidos por jornalistas do caderno de economia do veículo. A votação popular fica aberta até o próximo domingo (12/1) no site da premiação.
Prestes a completar três anos no tribunal, após 30 de atuação na advocacia trabalhista, Delaíde passou a ser mais citada na imprensa por virar uma espécie de interlocutora do TST na aprovação da Emenda Constitucional 72, a chamada PEC das Domésticas. Desde abril do ano passado, a Constituição determina a igualdade de direitos entre domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais. O motivo do envolvimento dela é também pessoal: a ministra, de 61 anos, foi empregada doméstica quando tinha 15 anos para pagar os estudos, no interior de Goiás. Natural de Pontalina, a mais velha de nove irmãos assistia a seções do Tribunal do Júri na falta de atrações culturais, já que a única sala de cinema da cidade exibia poucos filmes por mês.
A ministra defende que o Congresso regulamente logo a legislação sobre os empregados domésticos, em meio às dúvidas que existem nesse período de “insegurança jurídica”. Ainda restam dúvidas como, por exemplo: como o empregador vai pagar FGTS? Como calcular a jornada de trabalho? Como fica o caso dos cuidadores?
Esse apelo da magistrada abre espaço para uma questão: é papel do Judiciário opinar sobre a condução de assuntos debatidos no Legislativo?
Em 2013, por exemplo, gerou polêmica um manifesto com a assinatura de 19 ministros, incluindo Delaíde, contra um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados que prevê mudanças na contratação de terceirizados. Para ela, o ato não representa intromissão de um Poder em outro. “O maior reclame da sociedade é que o Judiciário é muito distante”, afirma, defendendo que magistrados contribuam para a discussão de propostas.
Integrante da 7ª Turma e da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SBDI-1), Delaíde concedeu entrevista por telefone à revista Consultor Jurídico de sua casa em Goiânia. Ela falou sobre o aumento de ações trabalhistas contra escritórios de advocacia e da necessidade de haver mais “clareza” nos critérios que levam a multas por condições trabalho análogas à escravidão.
Leia a entrevista:
ConJur — A senhora é uma das indicadas na área de economia em premiação do jornal O Globo dedicada a quem “faz diferença”. O que a senhora tem feito de diferente?
Delaíde Arantes — Se você analisar, o número de pessoas que faz diferença no Brasil é muito grande. Aparecer em uma lista na área de economia resumida a três pessoas é uma honra. Além de ministra sou cidadã, e como cidadã preciso me preocupar em contribuir para que nós possamos aperfeiçoar a democracia, construir uma sociedade mais igualitária. Sempre me preocupou muito a desigualdade, desde quando ingressei na carreira jurídica, há 33 anos. Quando trabalhei de doméstica, mais ou menos entre 1967 e 1968, a categoria não tinha nenhuma legislação de proteção. A CLT, que completa agora 70 anos, e a Constituição cidadã, com 25 anos, são dois processos de avanços de conquistas trabalhistas e sociais nas quais os domésticos foram excluídos. Então há 22 anos eu lancei um livro: Trabalho Doméstico — Direito e Deveres, em que eu tinha a preocupação de esclarecer o trabalhador doméstico. O livro, que já está na sexta edição, me fez participar de vários eventos, atuar com uma preocupação muito voltada para essa área. Mas não exclusivamente, porque tenho uma preocupação grande com as outras áreas. O Brasil é um país maravilhoso, mas a gente convive com uma desigualdade gritante. E eu sempre me preocupei em botar o meu tijolinho nessa construção.
ConJur — Foi por isso que a senhora apareceu no último ano como interlocutora na hora de discutir a PEC das Domésticas?
Delaíde Arantes — Sim. Através do Tribunal Superior do Trabalho, estive no Senado, me reuni com deputados, analisei pontos da proposta em conjunto com o presidente [do TST] Carlos Alberto e com outros ministros. Existem muitas peculiaridades: por exemplo, tem doméstica que emprega doméstica. Como o legislador vai aplicar a CLT e a Constituição sem levar em consideração essas peculiaridades? Essa é uma das razões da demora do avanço legislativo. Então, ali no Tribunal Superior do Trabalho tivemos oportunidades de prestar nossa contribuição.
ConJur — Mas ainda há alguns pontos dessa PEC que precisam ser regulamentados. O que a senhora espera dessa regulamentação, quais questões principais precisam ser discutidas?
Delaíde Arantes — Eu faço um apelo para que o Congresso não demore a aprovar a regulamentação, porque [a ausência dela] causa uma confusão grande. Me preocupo muito com os trabalhadores domésticos, mas também me preocupo com os empregadores. Quando foi promulgada a Constituição de 1988 as empresas diziam que não conseguiriam cumprir todos os direitos, que teriam de fechar. Eram milhares de empresas, não é? Agora, empregadores domésticos são milhões. E existe uma dúvida, uma insegurança jurídica grande por parte dos empregadores. Há poucos dias tive uma consulta e a médica me perguntou: “Como fica o fundo de garantia, já sou obrigada a depositar?” Veja bem, se a médica tem esse questionamento, imagina-se que essa dificuldade é abrangente. Com a regulamentação é possível esclarecer a população, pois até a mídia contribui com explicações. O período atual é de insegurança, por isso não pode demorar…
ConJur — Além do FGTS, a senhora destaca algum ponto que ainda causa dúvida?
Delaíde Arantes — Outro ponto que gera polêmica é sobre o intervalo. Às vezes a empregada doméstica não quer usufruir do intervalo de uma hora. É também difícil aplicá-lo às babás, às pessoas que moram na residência, aos cuidadores de crianças, de idosos, de pessoas com problemas de saúde. No caso dos cuidadores, por exemplo, como os empregadores ainda não estão organizados em sindicatos, esses profissionais podem fazer acordos individuais para suprir questões sobre a jornada de trabalho, já que não há negociação coletiva.
ConJur — Ainda sobre a PEC das Domésticas, a senhora chegou a declarar que a proposta não geraria uma enxurrada de casos na Justiça. A senhora mantém essa posição?
Delaíde Arantes — Não creio em uma avalanche, embora possa haver um acréscimo. Meu gabinete fez um levantamento recente em alguns regionais tribunais, por amostragem, e não identificou até o momento muita movimentação no sentido de ações trabalhistas envolvendo o trabalho doméstico. Em Goiás percebemos um aumento significativo, em torno de 15%, mas em São Paulo houve uma redução do número de processos trabalhistas. Uma das características desse trabalho é que a litigiosidade não é muito grande, porque a relação entre o trabalhador e o empregador doméstico é muito próxima. A gente lida com uma pessoa que é de extrema confiança, que cuida dos nossos filhos pequenos, da nossa casa, então o diálogo passa a ser inclusive uma necessidade. Sobre a questão do doméstico ainda gostaria de comentar minha participação em Genebra durante a aprovação da convenção 189 de 2011 [norma internacional para a atividade doméstica] na OIT [Organização Internacional do Trabalho]. Entre os 183 países que compõem a organização, alguns países da Europa sugeriram a supressão do direito ao ensino universitário argumentando que para os trabalhadores domésticos bastava o ensino profissional e o ensino fundamental. A delegação do Brasil solicitou a fala, quando pude prestar um depoimento dizendo que cursar os ensinos fundamental, profissional e universitário me propiciou advogar 30 anos e integrar a Corte Superior da Justiça do Trabalho do meu país.
ConJur — Além da questão das domésticas, chamou atenção em 2013 um manifesto no qual 19 ministros do TST, inclusive a senhora, se declaravam contra o Projeto de Lei 4330/2004 sobre a terceirização. Qual o problema dessa proposta?
Delaíde Arantes — Não somos contra a normatização, porque a norma traz segurança jurídica. Nós temos hoje a Súmula 331, mas compreendemos que existe um reclame grande dos empregadores ainda nesse sentido. Agora, não da forma proposta, porque poderia liberar empresas com atividade toda terceirizada, sem nenhum trabalhador próprio. O projeto ignora limites já existentes no Direito brasileiro, que só permite hoje a terceirização por parte de empresa de trabalho temporário, de serviços de vigilância, de conservação e limpeza e de serviços especializados ligados à atividade-meio. A proposta autoriza que a terceirização se generalize e atinja quaisquer segmentos econômicos. Em resumo, o que preocupa o TST é o caráter precarizante desse projeto, a possibilidade de redução da renda. Não sou contra a terceirização, em tese.
ConJur — Para a senhora, manifestações como essa não podem ser consideradas uma tentativa do Judiciário de se intrometer em tarefa do Legislativo?
Delaíde Alves Miranda — Não. Considero que é uma participação do Judiciário, não intromissão. O maior reclame da sociedade é que o Judiciário é muito distante. Quando o Tribunal Superior do Trabalho assina um documento chamando a atenção para o caráter de precarização [do projeto de lei], pode ser considerada uma posição corporativa, mas na verdade está contribuindo para essa discussão, está participando da nossa democracia.
ConJur — O tribunal tem decisões considerando que serviço de call center não poderia ser terceirizado, por ser atividade fim. A senhora concorda com esse entendimento?
Delaíde Arantes — Votei nesse sentido em circunstâncias específicas, de acordo com o processo que foi analisado. Essas questões são todas muito complexas, meu voto não significa que não possa tomar outra atitude em outra circunstância… Nem há unanimidade por parte de todos os ministros.
ConJur — E os casos de contratação que podem ter o objetivo de fraudar a legislação, como a participação societária de fachada ou a obrigação de que o funcionário seja pessoa jurídica?
Delaíde Arantes — Essa questão está merecendo um debate grande. É admissível que uma pequena empresa admita um empregado como sócio se está crescendo, faz parte do movimento da economia. Agora, se é para fraudar a legislação trabalhista, com a pessoa trabalhando da mesma forma, só para evitar o pagamento de 13º e férias, configura abuso. Muitas vezes a empresa faz isso sem muito esclarecimento, sem medir as consequências que terá futuramente. Pode gerar uma coisa que as empresas procuram de todo modo evitar, que é passivo jurídico. Isso acontece inclusive em setores da mídia. Componho a 7ª Turma, o SDI [Subseção 1 da Seção Especializada em Dissídios Individuais] e o Órgão Especial, e tenho observado ações contra escritórios de advocacia. Até o advogado associado ou sócio pode vir a ter vínculo de emprego reconhecido. Assumi a magistratura há quase três anos: em 2011 não me lembro de julgar ações desse tipo, no ano seguinte comecei a receber casos e em 2013 julguei mais. Não tenho um levantamento técnico, mas acredito que processos envolvendo escritórios tenham aumentado.
ConJur — Que outros temas a senhora julga relevantes hoje?
Delaíde Arantes — Nós temos no Tribunal Superior do Trabalho uma comissão de erradicação do trabalho infantil. Ainda vemos um número muito alto de trabalho infantil doméstico, mantém-se a ideia de que não há problema de criança trabalhar em uma casa, principalmente as meninas na faixa dos 12 anos. Tenho uma preocupação grande também com o trabalho análogo à condição de escravo. Neste ano vamos trabalhar para que esses cenários possam ser suprimidos.
ConJur — Em relação ao trabalho análogo à escravidão, a senhora avalia que há hoje uma definição clara do que caracteriza isso? Porque alguns empregadores dizem, por exemplo, que em algumas ocasiões a situação do trabalhador não seria de escravidão. Às vezes o local de trabalho não é adequado, mas o empregador diz que está reformando.
Delaíde Arantes — É. Tenho ouvido reclamações de que a fiscalização é muito rigorosa. Ainda é necessária uma aproximação maior das superintendências regionais do Trabalho com as entidades empregadoras, para que não haja injustiças. Há situações que podem ser acertadas com orientação, com medidas simples, e não necessariamente multas. Avalio que é preciso mais clareza, porque os trabalhadores precisam ser respeitados, trabalhar em boas condições de higiene e receber todos os seus direitos, mas os empregadores também precisam ter condições de continuar as operações da empresa.
ConJur — O trabalhador pode negociar com o empregador direitos como encurtar o horário de intervalo para sair mais cedo?
Delaíde Arantes — Não. No Tribunal Superior do Trabalho é pacificada nossa jurisprudência de que o intervalo não pode ser inferior a uma hora.