As empresas que atuam na área técnica da internet no Brasil estão sendo responsabilizadas judicialmente por ilícitos cometidos por terceiros. E ainda: obrigadas a cumprir determinações incompatíveis com o setor e que contrariam a jurisprudência. Sem os devidos cuidados para evitar falhas na redação e a escolha de regras que já se mostraram inviáveis no exterior, a lei brasileira que vai estabelecer os direitos e deveres para o uso e a exploração comercial da internet pode inviabilizar a permanência e a entrada de empresas no mercado.
O alerta veio a público no seminário Marco Civil da Internet no Brasil, promovido pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (13/5). Foi durante o painel de comentários ao projeto de lei, com a participação do diretor do Google Brasil, Ivo Correa, da diretora jurídica do site Mercado Livre, Laura Fragomeni, e da professora da Fundação Getúlio Vargas, Marília Maciel. A elaboração do projeto de lei da internet é coordenada pelo Ministério da Justiça , que recebe sugestões e críticas por meio do site http://culturadigital.br/marcocivil.
A internet no Brasil tem crescido, em média, 17% ao ano. Em relação ao comércio eletrônico, o crescimento anual é de 44%, devendo movimentar 55,8 bilhões de dólares em 2010. “Uma indústria desse porte não tem regras claras de como o provedor deve atuar”, reclamou Laura Fragomeni, para quem “isso dificulta ainda mais o crescimento do setor e gera dificuldades”. Novas empresas querem entrar no setor, mas desconhecem os riscos. O Judiciário trata como iguais todas as empresas, não diferenciando quem é provedor de acesso, de hospedagem ou de conteúdo, que têm diferentes tipos de negócio e as decisões são conflitantes. Também não há definições quanto à responsabilidade do provedor. “Sem essas definições, as empresas sofrem pressões de todo lado. Há mais de 100 projetos de lei tramitando no Congresso, as decisões judiciais são conflitantes, o Ministério Público toma atitudes e o setor privado questiona o conteúdo”, relatou a diretora do Mercado Livre.
Banco dos réus
As maiores empresas do setor de internet são os provedores intermediários, aqueles que dão acesso à rede, os serviços de busca e a hospedagem de conteúdos. O Google é o mais conhecido e mantém o Youtube, que é uma plataforma de postagem de vídeo. No mundo, a empresa recebe por minuto o equivalente a 24 horas de vídeos novos e ainda hospeda milhões de fotos no site Orkut. Não faz nenhuma produção de conteúdo, mas responde por cerca de 1.500 ações judiciais, a maioria relativa à responsabilidade pelas postagens de terceiros. “Cerca de 45% das decisões judiciais proferidas até hoje reconheceram o Google como culpado pelo conteúdo, mas a empresa não tem nada a ver com isso”, reclamou Ivo Correa.
Para o diretor do Google, a lei brasileira deverá responsabilizar diretamente os geradores de conteúdos. Segundo ele, é comum os juízes responsabilizarem os sites de hospedagem por conteúdos que não foram criados pelas empresas. Ivo Correia entende que a responsabilização dos intermediários traz maior risco para as empresas menores e para as que pretendem entrar no setor. “Os riscos no Brasil são altíssimos, decisões desse nível podem inviabilizar essas empresas”, alertou. Nos países onde a internet mais se expandiu, desde o início foi criada uma legislação que exime os intermediários de responsabilidade pelos conteúdos. Nos EUA, o assunto foi resolvido em 1998 e na Europa, em 2001. “O Brasil é reconhecido pelo desenvolvimento de softweres e setores da tecnologia, mas sem criar uma estrutura jurídica mínima, nunca vai ter um setor de tecnologia da informação como tem capacidade para ter”, disse o executivo.
Remoção de conteúdo
A decisão judicial que bloqueou o Youtube, devido à postagem de um vídeo com cenas íntimas da modelo Daniela Cicarelli com o namorado na praia, é considerada fora da realidade da internet. “É uma decisão complicadíssima do ponto de vista do Estado Democrático de Direito, porque impediu o acesso a todo o conteúdo do site por causa de um único vídeo, coisas que são comuns só em países pouco democráticos como a China e o Brasil faz incursões de jurisprudência numa direção perigosa como essa”, criticou a professora Marília Maciel. Para ela, a responsabilidade por post de terceiros, como comentários, atinge principalmente os blogueiros. “A responsabilização objetiva dos intermediários pode impedir que o usuário seja também um produtor de conteúdo, o que é importante para o desenvolvimento da rede”, ressaltou a professora da FGV.
Os provedores que hospedam conteúdo reclamam de situações complexas. O site Mercado Livre recebeu o requerimento de retirada do anúncio de um produto, sob a alegação de que o mesmo era pirata. O anunciante se recusou a retirar o anúncio, garantindo a legitimidade do produto. Entretanto, o site foi acionado judicialmente pela empresa detentora da marca por prática de pirataria. “A regra em outros países tem sido de responsabilizar os terceiros que geram os conteúdos, mas isso também já apresentou alguns problemas e a experiência agora recomenda um sistema de notificar o terceiro sobre o questionamento, deixando que o mesmo decida”, disse Laura Fragomeni. Mesmo sabendo que a legislação não vai resolver todos os problemas, o ideal é a criação do marco regulatório porque algumas empresas que criaram uma auto regulação já começaram a enfrentar alguns problemas, segundo ela.
A nova lei deverá estabelecer regras para a remoção de conteúdos. Sem essas regras, as empresas já enfrentam dificuldades para atuar no Brasil. Mediante prova de direito autoral, os conteúdos são retirados a pedido do autor. Mas, quando se trata de um possível crime contra a honra, as empresas só atuam mediante determinação judicial, pois, além da dificuldade de definir se realmente o conteúdo é ofensivo, as empresas não querem a responsabilidade de fazer essa definição e correr o risco de uma ação judicial pela retirada do conteúdo. “Não dá para o Google dizer se o material é difamação ou legítimo. Nós não temos esse poder que é da autoridade judiciária”, disse Ivo Correa.
Para o diretor do Google, a remoção por decisão judicial é a mais correta e não elimina a possibilidade da empresa retirar (spam e pornografia) por política própria ou acordo com o autor da postagem. “Também acho interessante o sistema canadense, copiado pelo Chile, em que a empresa comunica a denúncia de ilicitude e repassa ao autor do post a decisão de manter ou retirar o conteúdo na rede. É um modo até educativo, pois muitas vezes a pessoa nem se deu conta de que está violando direito autoral ou ofendendo terceiros”.
O grande desafio do projeto é regular sem criar uma censura prévia, fazendo com que as empresas sejam responsáveis pelos conteúdos. Para Laura Fragomeni, a dificuldade a ser vencida é estipular o tipo de conteúdo que deve ser removido e a quem cabe essa decisão. “Entendo que as empresas possam estabelecer regras junto ao seu usuário, sobre conteúdos que não podem ser inseridos. A lei cria regras gerais, mas nada impede que haja um contrato privado entre as partes com regras específicas”, disse a advogada.
Requisição para inquérito
Outra regra importante que a lei deve estabelecer é sobre a requisição de conteúdos por parte de autoridades. A diretora do Mercado Livre entende que as empresas precisam saber se ao atender requerimentos de autoridades policiais ou do Ministério Público, por exemplo, não estarão ferindo direitos constitucionais do cidadão. “A lei fala sobre uma autorização prévia do usuário, mas isso é incompatível com a velocidade que a internet requer”, explicou. Para ela, o termo de adesão, que pode ser eventualmente questionado, e a aceitação antecipada de termos e condições podem ser considerados autorização prévia. “Entendo que a empresa deva ter autorização prévia para armazenar os dados, mas a lei tem de regular a forma como esses dados podem ser disponibilizados a terceiros, o que deve ocorrer apenas com decisão judicial”, disse.
Os executivos dizem que a entrega dos logs (dados do usuário e acessos) para autoridades que fazem investigações só podem ocorrer mediante decisão judicial. Ivo Correa faz um paralelo com as escutas telefônicas e a quebra de sigilo telefônico, que são lícitas somente se ocorrer por decisão judicial. “Isso não é tão óbvio como parece”, ressaltou o executivo. Segundo ele, no Rio de Janeiro, o Google tem sito reiteradamente ordenado a entregar os logs de seus usuários à polícia e ao Ministério Público estadual sem decisão judicial específica para cada caso. Houve uma decisão judicial ampla, determinando a entrega direta dos logs sempre que a polícia ou o MP requisitarem. “Não há semelhante em outro estado, mas uma vez que ocorre no Rio de Janeiro, não vejo porque não entregar os logs em São Paulo ou qualquer outro lugar. Porém, não faz sentido entregar informações sigilosas dos usuários sem que um juiz analise o fundamento desse ato”, disse Ivo Correa.
Outra falha da lei, que pode inviabilizar as empresas de internet, é a regra prevista no artigo 10 do anteprojeto coordenado pelo Ministério da Justiça. O dispositivo prevê que uma ordem judicial possa determinar que os provedores façam o monitoramento para evitar que determinado conteúdo volte a ser postado. Segundo Ivo Correa, essa é uma regra impossível de se cumprir. “Não há solução técnica e humana capaz de monitorar os milhões de acessos”, disse. O diretor do Google explicou que esse pode não ser o objetivo do dispositivo, mas é preciso ajustar a redação para não criar uma obrigação impossível.