A atual enrascada na qual o governo se meteu para tentar evitar que a conta bilionária da geração termelétrica de energia desaguasse nas contas de luz pode ficar pequena diante de outro rombo no setor, desta vez aberto nos tribunais. As intervenções da presidente Dilma Rousseff para estabelecer o novo marco regulatório do setor energético, deflagradas com a polêmica Medida Provisória (MP) 579, de setembro de 2012, levaram algumas poucas empresas lesadas a recorrer à Justiça. Outras ainda podem seguir o mesmo caminho, induzindo a um passivo que alcançaria, com rapidez, a casa de dezenas de bilhões de reais, podendo se multiplicar ao longo de longas tramitações.
Os primeiros passos desse esqueleto – jargão usado para dívidas ainda desconhecidas ou não aceitas pelo governo – foram dados com os processos abertos pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), com o intuito de preservar as concessões das hidrelétricas de São Simão, Miranda e Jaguara. Ao lado da paranaense Copel e da paulista Cesp, a empresa mineira fez parte do grupo de concessionárias rebeldes que não aderiram ao programa federal de renovação condicionada de contratos, por causa do corte dos valores pagos pela geração para reduzir a conta de luz. A primeira licitação para colocar uma usina em novas mãos já foi judicializada, a de Três Irmãos (SP), com a Cesp exigindo mudanças no edital e revisão no valor previsto para sua indenização.
É justamente nas questões referentes aos valores a serem pagos pelo Tesouro para indenizar os ativos devolvidos à União onde mora o maior perigo de passivos bilionários. Na época da edição da MP, o governo informou que as indenizações estariam limitadas ao teto de R$ 21 bilhões, correspondente ao saldo do fundo setorial Reserva Global de Reversão (RGR). Diferentemente desse parâmetro, muitas empresas exigiram pelo menos o dobro do oferecido.
Acrescenta-se a esse caldeirão a possibilidade de reclamar em razão dos abalos sofridos pelas empresas no mercado de capitais, com a alteração de suas perspectivas de receita e com a piora da confiança no ambiente regulatório. O único ponto a favor do governo nessa questão é que a maior prejudicada pelas medidas, a estatal federal Eletrobras, não irá se insurgir contra as suas arrasadoras perdas. “É uma pena ver um setor antes autossuficiente financeiramente ter virado, pós-MP 579, dependente de dinheiro público ou de tarifaços”, comenta o consultor João Carlos Mello, presidente da Thymos Energia.
A bomba elétrica de efeitos retardados e ainda mais desastrosos para as contas públicas e para o contribuinte que o atual socorro federal às distribuidoras se deve, segundo especialistas, à falta de diálogo e transparência do Planalto em editar regras inesperadas e de elevada repercussão na contabilidade patrimonial e no caixa das concessionárias. “Estavam sobre a mesa da presidente pelo menos quatro alternativas para dar resposta à expectativa naquele momento sobre o desfecho de várias concessões prestes a expirar. Ela (a presidente) preferiu, contudo, agir sem dar ouvidos aos agentes e sem deixar espaços para revisões antes de lançar a MP, abrindo chances à judicialização”, comenta Cláudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil.
Ele lembra que, pouco depois da sacudida da renovação forçada dos contratos, as tensões judiciais ganharam importante reforço com a portaria número 3 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), editada em março de 2013 e que obrigava geradoras a arcarem com metade dos custos de acionamento das termelétricas. Trata-se de uma questão ainda não resolvida e que pode render novos embates, caso o governo queira aprofundar nessa saída para redistribuir riscos financeiros.
Indenização por receita frustrada
Economistas que estudam relações governamentais acham difícil abordar um tema espinhoso e de desdobramento imprevisível, mas recomendam aos juristas mais atenção aos potenciais danos ao erário. “O que mais me preocupa em casos envolvendo passivos federais é a incapacidade do Judiciário de perceber impactos financeiros de suas decisões, alguns tão elevados que acabam nunca sendo pagos, desmoralizando a própria ação”, diz Raul Velloso, especialista em orçamento público.
Para Bernard Appy, diretor da LCA Consultores e ex-secretário executivo do Ministério da Fazenda, os casos mais recentes de esqueletos que saíram do armário, como a indenização a ser paga pela União à falida companhia aérea Varig, decorrente do congelamento de tarifas de 1985 a 1992, dentro do Plano Cruzado, merecem preocupação. “Há uma agenda importante a ser discutida nos próximos anos visando a mudar a maneira como a Justiça atua, de modo a reduzir o custo de passivos resultantes de eventos passados e que são apenas confirmados por eventos futuros”, destaca.
Guilherme Berejuk, advogado especializado em ações do setor elétrico, ressalta que o expressivo risco de judicialização associado à MP 579, convertida na Lei 12.783/2013, já permite algumas especulações. Para concessionárias que pleiteiam o direito a mais 20 anos de concessão de usinas devolvidas à União, a indenização pela receita frustrada desse período poderia ser requerida ao Judiciário. “Para cada 100 megawatts (MW) de potência instalada e não prorrogada poderia se pedir R$ 2 bilhões em indenizações, levando em conta um preço de R$ 150 o MW/hora para venda de energia no mercado”, ilustra.
Para concessionárias de geração e de transmissão, ele também aponta riscos originados nas distribuidoras. “Como as regras para a prorrogação dessas concessões não foram definidas, a eventual inclusão de cláusulas para redefinir o risco financeiro das distribuidoras poderá resultar em descontentamentos e disputas judiciais”, detalha. O ideal, nesse caso, seria o governo buscar o diálogo, o mesmo que faltou na edição da MP 579.
O novo modelo do setor elétrico desenhado pela equipe de Dilma acabou virando, segundo gente entendida, uma colcha de retalhos regulatória para tentar normalizar os negócios que ele próprio desestabilizou. Até o hoje, o governo não conseguiu colher frutos positivos com suas intervenções e, para seu azar, ainda esbarrou em dois anos seguidos de hidrologia ruim, ressuscitando o fantasma do racionamento de energia, cujos efeitos eleitorais são temidos pelos governistas.
O ministro José Jorge, relator de auditoria sobre a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), encargo setorial usado para indenizar concessionárias e socorrer distribuidoras, entre outras providências, convocou audiência pública para o próximo 8 de maio, para ouvir contribuições de autoridades, representantes de concessionários e especialistas acerca dos impactos advindos da MP 579/2012 sobre o a CDE. Ele lamenta que as mexidas no setor tenham levado à perda da autossuficiência do sistema elétrico, de sua transparência e da previsibilidade das fontes energéticas.