Em 7 de outubro de 2024, foi publicado o Convênio ICMS nº 109/2024, que regulamenta as remessas interestaduais de bens e mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, inclusive ao direito à transferência do crédito de ICMS entre as unidades federadas de origem e de destino, inaugurando um novo capítulo no debate sobre o tema.
Uma breve retrospectiva nessa evolução normativa e jurisprudencial pode ser esclarecedora para compreender o ineditismo das mudanças promovidas pelo Convênio ICMS nº 109/2024.
Apesar de o Poder Judiciário já possuir uma jurisprudência consolidada no sentido de que o ICMS não incide sobre transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte — entendimento este, inclusive, sumulado no Superior Tribunal de Justiça (STJ) —, o Rio Grande do Norte ajuizou a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 49, para garantir que fosse reconhecida a constitucionalidade da referida incidência.
Em 2021, além de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter certificado que o deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular não configura fato gerador da incidência de ICMS, confirmou que a hipótese de incidência não é alterada, ainda que se trate de circulação interestadual.
O alcance da decisão motivou o Rio Grande do Norte a opor embargos de declaração, nos quais argumentava-se que a declaração de inconstitucionalidade da incidência do ICMS em remessas interestaduais obrigaria a unidade federada de origem a exigir o estorno proporcional dos créditos de imposto das entradas respectivas, enquanto à unidade federada de destino caberia o recolhimento do imposto “cheio” na operação subsequente, sem a possibilidade de utilização de quaisquer créditos oriundos das transferências interestaduais.
Apesar do esforço do estado potiguar, os argumentos não foram acolhidos e os embargos de declaração foram rejeitados. O STF entendeu que o reconhecimento da inconstitucionalidade do ICMS nas remessas interestaduais não corresponderia à não incidência e às hipóteses de estorno previstas no artigo 155, § 2º, inciso II, da Constituição, de modo que o crédito do imposto deveria ser mantido. Além disso, o tribunal decidiu modular os efeitos temporais da decisão para o início do exercício financeiro de 2024, ocasião em que os estados precisariam disciplinar as transferências de créditos de ICMS entre estabelecimentos do mesmo titular, sob pena de reconhecimento automático do direito dos sujeitos passivos de transferirem seus créditos.
Apesar de não ter sido mencionado de forma expressa na decisão, por força do artigo 155, § 2º, inciso XII, alínea ‘c’, da Constituição, a regulamentação relativa ao regime de compensação de ICMS é matéria pertencente ao âmbito da lei complementar de caráter nacional. Assim, caberia ao Congresso Nacional dar cumprimento à decisão do STF, proferida no julgamento da ADC nº 49, antes do início do exercício de 2024.
Contudo, a desídia do Poder Legislativo em lidar com o tema e a ânsia dos estados em regulamentá-lo a partir de seus próprios termos e interesses fez com que o Confaz editasse o Convênio ICMS nº 174, de 31 de outubro de 2023, para dar cumprimento à decisão da corte constitucional, determinando que a transferência de créditos de imposto em remessas interestaduais de bens e mercadorias seria obrigatória e operacionalizada por meio de registros de débitos e créditos nos Livros Registro de Saídas e de Entradas dos estabelecimentos da unidade federada de origem e de destino, respectivamente, com a emissão da nota fiscal, destacando o percentual de crédito a ser transferido, resultante da aplicação das alíquotas interestaduais previstas no artigo 155, § 2º, inciso IV, da Constituição.
Ocorre que, poucos dias após sua edição, o estado do Rio de Janeiro não ratificou o convênio mencionado, por meio do Decreto Estadual nº 48.799/2023, acatado pelo Ato Declaratório Confaz nº 44/2023, sob o fundamento de que o caráter obrigatório da transferência dos créditos exigida pelo Confaz violaria as razões de decidir da ADC nº 49, uma vez que teria sido consignado que o direito à transferência é uma faculdade do próprio contribuinte.
Dada a rejeição da proposta original, o Confaz consultou o Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados (Conpeg) para confirmar o adequado cumprimento da decisão do STF. O órgão consultivo confirmou que a transferência de créditos de ICMS em remessas interestaduais de mercadorias seria obrigatória — uma mera decorrência das razões de decidir da ADC nº 49 —, sendo desnecessária a unanimidade na aprovação de convênio no âmbito do Confaz que versasse sobre a matéria.
Assim, o Confaz aprovou o novo Convênio ICMS nº 178/2023, que, agora, sob a batuta do Conpeg e com a concordância do estado do Rio de Janeiro, reiterava a mesma disciplina do finado Convênio ICMS nº 174/2023, inclusive quanto à obrigatoriedade das transferências de créditos de ICMS em remessas interestaduais.
Transferência de mercadoria para mesmo titular não tem fato gerador de imposto
Em paralelo, os debates no Congresso Nacional caminhavam a passos largos, e culminaram na edição da Lei Complementar nº 204/2023, que atualizou o artigo 12 da “Lei Kandir” (Lei Complementar nº 87/1996), adicionando os §§ 4º e 5º.
O § 4º estabelece que, quando uma mercadoria é transferida de um estabelecimento para outro que pertença ao mesmo titular, não ocorre o fato gerador do imposto. Além disso, o crédito tributário referente às operações e prestações anteriores é mantido em favor do contribuinte. Isso inclui casos de transferências interestaduais, onde os créditos serão garantidos.
No caso de transferências interestaduais:
(i) a unidade federativa de destino será responsável por garantir esses créditos, através de uma transferência de crédito, respeitando os percentuais estabelecidos no inciso IV do § 2º do artigo 155 da Constituição, aplicados sobre o valor da operação de transferência, e
(ii) se houver uma diferença positiva entre os créditos das operações anteriores e o valor transferido na forma do inciso I, a unidade federativa de origem deverá assegurar essa diferença.
O§ 4º não criou uma obrigatoriedade nas transferências dos créditos oriundos das entradas dos estabelecimentos localizados nas unidades de origem para os estabelecimentos localizados nas unidades de destino. Ao contrário, criou uma garantia de manutenção — isto é, de não estorno — de tais créditos (“mantendo-se”, nos termos do § 4º), que possibilita o exercício do direito subjetivo do contribuinte (que exprime uma faculdade, portanto) de transferir o crédito de ICMS do estabelecimento do Estado de origem à unidade federada de destino, limitado às alíquotas interestaduais (“limitados”, como dito no inciso I). Caso haja diferença positiva entre os créditos oriundos das operações anteriores e o valor transferido (conforme previsto no inciso II), o Estado de origem deverá assegurar o direito à sua utilização.
Ao limitar o valor máximo de créditos a serem transferidos para os estados de destino nas remessas interestaduais às alíquotas interestaduais, a Lei Complementar nº 204/2023 parece ter contrariado os fundamentos da ADC nº 49. Afinal, se o resultado prático do julgamento foi a declaração de inconstitucionalidade, sem redução de texto, do artigo 11, § 3º, inciso II, da Lei Kandir[13], que regulamenta a autonomia dos estabelecimentos para fins de sujeição passiva nos casos de transferências de mercadorias, necessariamente o crédito de ICMS oriundo da entrada no estabelecimento da unidade de origem deveria ser passível de aproveitamento integral com os débitos das saídas subsequentes do estabelecimento da unidade de destino — inclusive no que se refere às remessas interestaduais.
Ao limitar o valor dos créditos de imposto a serem transferidos ao “teto” da alíquota interestadual, a lei complementar garantiu ao contribuinte optar pela transferência dos créditos dentro de uma amplitude de valores possíveis, que poderiam ir de zero até o montante equivalente à alíquota interestadual aplicável (4%, 7% ou 12%, conforme o caso). Trata-se de interpretação literal do dispositivo da lei complementar, pois calcada no argumento a fortiori de “quem pode mais, pode menos”, ou seja, decorre do sentido preliminar do texto normativo e que se compatibiliza com o resultado da ADC nº 49, que não obriga a transferência dos créditos de ICMS em remessas interestaduais, mas tão somente garante a sua manutenção.
O inciso II do § 4º complementa esse entendimento, pois o estado de origem somente é obrigado a assegurar a utilização de créditos caso haja diferença positiva entre os créditos oriundos das entradas no estabelecimento de origem e o valor transferido na forma do inciso anterior. Logo, não havendo valor a ser transferido para o estabelecimento da unidade federada de destino, caberá ao Estado de origem garantir a integralidade do crédito de ICMS oriundo das entradas praticadas pelo estabelecimento localizado em seu território (isto é, a diferença positiva entre os créditos decorrentes das entradas e o que fora transferido — nesse caso, não houve transferência de qualquer valor).
Por sua vez, o § 5º estabelece uma alternativa ao § 4º. Nesse caso, o contribuinte pode optar por tratar a transferência de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo titular como se fosse uma operação sujeita à incidência do imposto, ou seja, como se o fato gerador do imposto estivesse ocorrendo. Para as operações realizadas dentro de um mesmo estado, serão aplicadas as alíquotas estabelecidas pela legislação estadual vigente, e, para as operações interestaduais, as alíquotas serão fixadas conforme o inciso IV do § 2º do artigo 155 da Constituição.
Parece-nos que o § 5º é uma tentativa de retorno ao status quo ante. Os contribuintes que optarem pela adoção do regime alternativo continuarão destacando o ICMS incidente em operações de remessas, internas ou interestaduais, por meio da equiparação a uma operação sujeita à ocorrência do fato gerador, aplicando as alíquotas cabíveis em cada caso. Não se trata de uma decorrência do que foi determinado pela ADC nº 49, mas uma concessão em prol da simplificação e da praticabilidade — que flerta com a inconstitucionalidade.
Nesse contexto, surge o Convênio ICMS nº 109/2024, editado para substituir o Convênio ICMS nº 178/2023 e atualizar as normas do Confaz diante das alterações trazidas pela Lei Complementar nº 204/2023, com a finalidade de cumprir a determinação feita pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC nº 49, no sentido de regulamentar o direito à transferência de créditos nas remessas interestaduais de bens e mercadorias.
Diferentemente do regime previsto pelo convênio revogado, o Convênio ICMS nº 109/2024 esclarece, em sua cláusula primeira, que a transferência de créditos na remessa interestadual de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte é um direito (e não uma obrigatoriedade), em oposição direta ao texto do revogado Convênio ICMS nº 178/2023, que expressamente previa como obrigatória a transferência de crédito.
Lei Kandir
O parágrafo único da cláusula primeira adotou uma redação distinta do § 4º do artigo 12 da Lei Kandir, com as alterações promovidas pela Lei Complementar nº 204/2023, ao prever que a unidade federada de origem fica obrigada a assegurar “apenas a diferença positiva entre os créditos pertinentes às operações e prestações anteriores e o resultado da aplicação dos percentuais estabelecidos no inciso IV do § 2º do artigo 155 da Constituição, aplicados sobre o valor atribuído à operação de transferência realizada”.
A redação suprimiu o termo “limitando”, constante do inciso I do § 4º do artigo 12 da Lei Kandir, dando a impressão de que o estado de origem somente estaria obrigado a assegurar a diferença positiva entre os créditos oriundos das entradas ocorridas no estabelecimento localizado em seu território e as alíquotas interestaduais, que sempre seriam aplicadas imperativamente, não havendo possibilidade de optar pela manutenção da integralidade dos créditos no estado de origem. Caso o contribuinte tentasse utilizar um montante de créditos superior à diferença positiva entre os créditos oriundos das entradas no estabelecimento de origem e o valor das alíquotas interestaduais respectivas, estaria sujeito à glosa dos créditos excedentes.
Essa interpretação contraria a redação dos incisos I e II do § 4º do artigo 12 da Lei Kandir, com as alterações promovidas pela Lei Complementar nº 204/2023, que obriga o estado de origem a garantir tão somente a diferença positiva entre os créditos oriundos das entradas ocorridas no estabelecimento localizado e o que foi efetivamente transferido, limitando-se às alíquotas interestaduais.
Se a transferência de créditos nas remessas interestaduais é um direito e não uma obrigatoriedade, como bem consignado na ADC nº 49, permitir o não exercício do direito de transferência equivale necessariamente a garantir a sua manutenção e utilização no estabelecimento localizado no estado de origem.
Fonte: Conjur