Inobstante o devido processo legal ser o mais importante instrumento de preservação da liberdade, pois pressupõe não só acusação como também o contraditório e a ampla defesa, o Ministério Público vem cometendo sérios equívocos ao não observar esse princípio constitucional, especialmente quando estamos diante dos crimes societários contra a ordem tributária.
Isto porque nos crimes contra a ordem tributária, o objetivo do contrato social é lícito, na medida em que a sociedade é formada tão somente para o exercício de atividade lícita. Assim, não há falar em solidariedade quando do cometimento desses crimes, já que a sociedade jamais é formada com objetivo de praticar conduta criminosa.
Inegável que o MP não age com a cautela necessária nesses casos, pois no âmbito de uma determinada empresa, pode ocorrer diversos fatos sem o consentimento de seus sócios e diretores, resultando, na esmagadora maioria dos casos, em uma denúncia genérica que responsabiliza a vítima (sócio) e não o criminoso.
Neste sentido, destacamos os ensinamentos de Damásio de Jesus:
“A acusação não pode ser presumida, pois o indivíduo só deve ser atingido, pelo processo, em sua liberdade e intimidade, quando demonstrada a intenção do estado em puni-lo pela prática de um fato típico determinado. Assim, é imperioso que a denúncia descreva detalhadamente um fato típico doloso ou culposo, imputando-o ao agente, evitando qualquer tipo de presunção.”[1]
Após essa breve síntese, trazemos a tona um caso prático da conduta indevida do Ministério Público.
Trata-se da Ação Penal n. 020.04.008222-9 movida contra sócio de determinada empresa com sede no estado de Santa Catarina, onde o MP alega a sonegação de ICMS. Refira-se que o autor da ação jamais trouxe aos autos qualquer indício de autoria e, sequer, provas da conduta ilícita denunciada.
A Édison Freitas de Siqueira Advogados atuou nesse processo buscando inibir a imputação indevida de fato criminoso ao seu cliente.
Pois ao observar os diversos vícios e arbitrariedades contidas na denúncia, a Édison Freitas de Siqueira suscitou em sua tese de defesa a inaplicabilidade de culpa presumida e a aplicação do princípio do “in dubio pro reo”, demonstrando de forma robusta e cabal que o acusado trabalhava somente na parte industrial, diretamente na linha de produção da empresa e, por isso, não tinha poderes de gestão no setor financeiro, razão pela qual ausente a prática de ato delituoso.
E referida tese obteve total procedência, conforme transcrevemos trecho da decisão prolatada pelo Douto Juiz da causa:
“Portanto, havendo dúvida sobre o liame subjetivo doloso do acusado (…) na conduta delitiva, que não pode ser simplesmente presumida pelo fato de ser sócio gerente da empresa, a absolvição é medida de Justiça, nos termos do art. 386, VII, do CPP, restando prejudicada a análise das demais teses defensivas (…)”
Pela análise da decisão supra, inequívoco que no Direito Penal é vedada a denominada responsabilidade sem culpa. O agente somente poderá ser responsabilizado penalmente se houver obrado com dolo ou culpa. Caso não esteja presente, no caso concreto, o elemento subjetivo, o dolo ou a culpa, o tipo penal não estará perfeito, pelo que não haverá crime. E tal regra é plenamente aplicável aos crimes contra a ordem tributária.
Destacamos que as informações constantes do contrato social jamais constituirão uma presunção absoluta contra sócios e diretores de uma empresa. Nesse sentido a utilização isolada do contrato social como meio hábil a ensejar uma denúncia é bastante discutível. Isso seria o mesmo que condenar um cidadão simplesmente pelo fato de constar em um documento poderes gerenciais o que configura verdadeira afronta ao princípio constitucional da presunção de inocência, conforme dispõe o art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal.
Neste sentido, com relação aos crimes contra a ordem tributária, a Carta Maior garante que a responsabilidade penal é pessoal do agente e observada à medida de sua culpabilidade. Do contrário, seria o mesmo que aceitar a responsabilidade sem culpabilidade, ou seja, a responsabilidade objetiva pelo crime contra a ordem tributária, o que não é admitido no atual ordenamento penal.
Portanto, o fato de o contrato social de uma empresa atribuir poderes de gerência aos sócios, não significa presumir sua responsabilidade objetiva nos crimes contra a ordem tributária, pois neste caso em particular, o acusado não tinha qualquer ingerência sobre a administração da empresa, estando responsável tão somente pela linha de produção.
Assim, resta inequívoco que a simples dúvida quanto à culpabilidade dos sócios nos crimes contra a ordem tributária, por si só, enseja sua absolvição em clara observância ao princípio constitucional da presunção de inocência e do princípio previsto no ordenamento penal, “in dúbio pro reo”.
Dr. Josué Oliveira.
[1] Damásio de Jesus, “A Denúncia nos Crimes Cometidos por meio de Empresa”, Revista Dialética de Direito Tributário n. 2, p. 19.