COM A ECONOMIA mundial ainda em frangalhos, a escalada dos preços internacionais das commodities é um fenômeno que chama a atenção. Nos últimos meses, várias delas acumularam valorizações expressivas. O índice Reuters Jefferies-CRB, que acompanha uma cesta formada por metais, alimentos e combustíveis, alcançou a maior pontuação desde outubro de 2008 e se aproximou do recorde registrado em julho daquele ano.
Os contratos para entrega futura de algodão atingiram a maior cotação desde que começaram a ser negociados em Nova York, há 140 anos, após subir quase 70% em 12 meses. O ouro, que subiu mais de 30%, também bateu sucessivos recordes nas últimas semanas. Desde outubro do ano passado, o açúcar subiu 18%; a soja, 25%; e o milho, 50%. O preço do cobre é o maior em 26 meses.
O movimento ganhou fôlego a partir de setembro, quando o Fed (Federal Reserve, o banco central norte-americano), começou a emitir sinais de que se prepara para uma nova rodada do que os economistas chamam pomposamente de “afrouxamento quantitativo”. Em outras palavras, a instituição está religando a máquina de imprimir dólares, a fim de colocar mais dinheiro na economia, que teima em não despertar do sono profundo em que mergulhou após o estouro da bolha imobiliária.
Com a medida, o governo tenta estimular o crédito, desvalorizar a moeda – condição necessária para aumentar a competitividade do país – e evitar que os preços dos imóveis e de outros ativos entrem numa espiral deflacionária, com consequências desastrosas para a economia.
A medida provocou uma verdadeira corrida dos especuladores às bolsas de mercadorias. Segundo a Comissão de Comércio de Futuros de Commodities (CFTC, em inglês) dos Estados Unidos, o volume de contratos para entrega futura nas mãos de fundos e especuladores aproxima-se de 1,5 milhão, o maior já registrado. Não à toa. Segundo os especialistas, as condições criadas pelo banco central norte-americano criam um cenário amplamente favorável para uma verdadeira explosão nos preços desses ativos.
Em primeiro lugar, porque a estratégia do Fed tende a enfraquecer ainda mais o dólar, o que levou os mercados financeiros a aumentar suas apostas contra a moeda americana. Nos últimos dias, o dólar registrou a menor cotação do ano na comparação com uma cesta de divisas importantes. Na comparação com o iene, o valor é o mais baixo em 15 anos. Como as mercadorias negociadas nas bolsas internacionais são cotadas em dólar, os preços tendem, naturalmente, a subir para se ajustar ao poder de compra dos importadores que usam outras moedas. Por isso, as commodities são consideradas um instrumento importante de proteção cambial.
A falta de confiança no dólar como moeda de reserva tem estimulado a demanda principalmente por ouro, considerado um porto seguro em períodos de turbulência. Segundo a consultoria britânica especializada em metais GFMS, bancos centrais e organizações internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), devem se tornar, pela primeira vez em 22 anos, compradores líquidos de ouro em 2010. Desde o início da década, o preço do metal praticamente quintuplicou. “Todos os bancos centrais têm comprado ouro, especialmente a China, que vê o valor de suas reservas em dólar cair a cada dia”, afirma Vinícius Ito, analista de commodities da corretora Newedge USA, em Nova York.
Ito afirma ainda que os fundos têm comprado commodities com o objetivo de “precificar” o potencial inflacionário criado pela enxurrada de dólares que o Fed vem despejando no mercado nos últimos três anos. Como não tem mais como baixar os juros, já próximos de zero, o banco central americano usa o “dinheiro novo” para comprar títulos da dívida do Tesouro – os chamados treasuries.
Os treasuries são negociados com descontos maiores quando o mercado percebe um aumento das pressões inflacionárias, o que significa que os compradores recebem mais do governo na hora de resgatá-los. Por isso, os investidores usam os papéis da dívida como um instrumento para se proteger da inflação.
Ao criar uma demanda fictícia pelos treasuries, o Fed mantém os papéis artificialmente valorizados, o que anula esse mecanismo. “Sem a referência dos títulos públicos, os fundos se vêem obrigados a comprar ativos tangíveis, que consigam precificar a inflação”, explica. Desde o agravamento da crise financeira, em 2007, valor dos ativos em poder do Fed cresceu de 869 bilhões para mais de 2,3 trilhões de dólares, segundo os dados oficiais.
Os fundos de investimento fecharam o terceiro trimestre com 320 bilhões de dólares em suas carteiras de commodities, um recorde. Apenas neste ano, o volume aplicado cresceu quase 38 bilhões de dólares. Ainda é uma gota no oceano de um mercado que movimenta centenas de trilhões de dólares em derivativos financeiros, mas é muito mais dinheiro do que as bolsas de mercadorias jamais sonharam ver. Há menos de uma década, os especuladores não tinham mais que 15 bilhões de dólares lastreados em matérias-primas.
No jargão do mercado, os fundos podem ficar “comprados” ou “vendidos”, ou seja, podem apostar na alta ou na queda dos preços. Contudo, quase metade dos recursos investidos atualmente pertence aos chamados fundos de índices, que compram cestas de commodities e seguram suas posições com o objetivo de diversificar suas carteiras e se proteger contra a inflação no longo prazo.
A “financeirização” dos mercados de commodities fez crescer a correlação entre os preços de commodities que não possuem qualquer relação entre si. Por isso, os preços refletem cada vez menos as condições de oferta e demanda de cada produto. Em vez disso, refletem cada vez mais o sentimento dos agentes financeiros em relação ao conjunto das matérias-primas ou à economia. Em 2009, a relação entre os preços das commodities e das ações negociadas em Nova York foi a maior em quase 30 anos. Por isso, é grande a pressão no Congresso dos Estados Unidos por medidas que restrinjam a ação dos especuladores, especialmente nos mercados de alimentos.
Steve Cachia, analista de commodities da corretora paranaense Cerealpar, observa que a política monetária norte-americana não explica, sozinha, a valorização das matérias-primas. Para ele, questões estruturais são mais importantes para explicar a escalada dos preços. “Entramos num novo ciclo de preço para as commodities, com patamares médios mais elevados do que observamos nas últimas décadas”, sustenta. Segundo Cachia, o crescente apetite dos países em desenvolvimento por alimentos, petróleo e minérios faz com que qualquer excedente de produção seja rapidamente absorvido, mantendo os preços sustentados. A produção de biocombustíveis como o etanol, que consome um terço de toda a cultura de milho dos Estados Unidos, não pode ser ignorada. “Os especuladores têm o poder de antecipar e acelerar movimentos de alta e baixa, mas não criam uma tendência”, acredita.
Contudo, não são desprezíveis os temores de que o Fed esteja ajudando a formar uma bolha nos mercados de commodities. Se o banco central americano realmente religar a máquina de imprimir dinheiro, é sinal de que a condição da economia, três anos após o estouro da bolha, é pior do que se imagina. “Pensar que a China, sozinha, conseguirá manter a demanda mundial aquecida é repetir o erro em que muitos economistas caíram em 2008”, afirma um analista norte-americano. Os preços das commodities bateram recorde em julho daquele ano, mas caíram quase pela metade depois da quebra do Lehman Brothers.
Outro risco, apontado por um relatório do banco de investimento Barclays Capital, é que o mercado se desaponte com o volume de compras do Fed. “Neste caso, o sentimento pode voltar a deteriorar-se, o dólar certamente se fortaleceria e as commodities ficariam extremamente vulneráveis a uma liquidação por parte dos especuladores.”