A discussão sobre a tributação dos planos de ofertas de compras de ações na esfera administrativa é antiga e, se narrada em ordem cronológica, começa em 2013. Naquele ano, o Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf) realizou o primeiro julgamento sobre a tributação dos planos de incentivos por oferta de ações (mais conhecidos como stock options, na terminologia em inglês).
Na ocasião, a 1ª Turma da 3ª Câmara da 2ª Seção decidiu que o plano de oferta de ações concedido pela companhia aos seus executivos teria natureza remuneratória. Assim, o contribuinte – no caso, a pessoa jurídica que aprovou o plano de ofertas de ações – estaria obrigado a recolher a contribuição previdenciária patronal (com base no artigo 22, I e III c/c artigo 28, I e III da Lei 8.212/91 e artigo 195 da Constituição).
Anos depois, chegou ao Carf uma nova leva de processos sobre a tributação de stock options, mas do ponto de vista da pessoa física que exerce a opção de compra das ações. Na ocasião, a mesma turma de julgamento – com uma nova composição – decidiu que a integração dessas ações ao patrimônio da pessoa física representaria um acréscimo patrimonial passível de tributação pelo imposto de renda como rendimento (artigo 43 do Código Tributário Nacional e artigo 153, III da Constituição Federal).
Desde então, mais de cem acórdãos do Carf versaram sobre a matéria, analisando a tributação dos diversos modelos de planos de ofertas de ações sob vários aspectos:
O ponto comum nos diversos julgados do Carf é que a discussão sempre se inicia pela definição da natureza jurídica dos planos de ofertas de ações. Afinal, é essa natureza – remuneratória ou mercantil – que determinará se os valores farão parte da base de cálculo da contribuição previdenciária patronal (salário de contribuição, cf. artigo 28 da Lei 8.212/91 e artigo 195, I da CF) e do imposto de renda na forma de rendimento (ou seja, como produto do trabalho, nos termos do artigo 2º da Lei 7.713/88) ou de ganho de capital (artigo 21 da Lei 8.981/95).
Para poupar o leitor de uma digressão de mais de uma década, avançamos diretamente para setembro de 2024, quando o Superior Tribunal de Justiça analisou a natureza jurídica dos planos de ofertas de ações no âmbito do Recurso Especial 2.069.644/SP, interposto pela Procuradoria da Fazenda Nacional, e do Recurso Especial 2.074.564/SP, interposto por um contribuinte.
No Tema 1.226, coube à 1ª Seção da Corte Superior decidir sobre a natureza jurídica dos planos de opção de compra de ações oferecidos pelas companhias a seus executivos, definindo se estão vinculados ao contrato de trabalho (remuneração) ou se são de caráter estritamente comercial. Esse entendimento era importante para determinar a alíquota aplicável do imposto de renda e o momento de incidência do tributo. Na ocasião, o STJ entendeu que os planos de stock options têm natureza mercantil.
Considerando que a matéria tem natureza infraconstitucional e foi analisada pelo STJ sob a sistemática dos recursos repetitivos, a decisão prolatada deveria pôr fim a qualquer controvérsia sobre o tema. Está definido: os planos de stock options têm natureza mercantil. Ao Carf compete apenas replicar a decisão da Corte Superior.
Os planos de oferta de ações são instrumentos já há muito conhecidos no ambiente empresarial. São formas de incentivo concedidas a colaboradores estratégicos para a companhia com o intuito de integrar interesses: ao permitir a participação (potencial ou efetiva) do colaborador no quadro de acionistas, a empresa busca harmonizar o interesse do indivíduo ao objetivo geral dos acionistas de valorização do negócio (ações). Isso gera um incentivo individual que, em última análise, contribui para o crescimento da companhia.
O negócio jurídico é simples: a companhia se obriga, mediante acordo aprovado perante a assembleia geral, a entregar ao beneficiário (colaborador, executivo) ações de sua emissão em quantidades e valores previamente definidos.
A complexidade do negócio jurídico está na diversidade de condições que podem ser aplicadas à opção de compras de ações: pagamento de prêmio na adesão ao plano, período mínimo para a manifestação do interesse de compra (vesting period), critérios para pagamento do preço das ações, imposição de um prazo para a revenda, entre outros. Esses diversos fatores determinam os contornos específicos de cada um dos planos de oferta de ações.
Para fins tributários, há três momentos cruciais:
Outorga da opção de compra pela companhia. Nos termos do artigo 168, § 3º, da Lei 6.404/76, a assembleia geral pode aprovar um plano para oferta de ações a administradores ou empregados. Esse momento marca a concessão da oferta, que é feita a preço certo e com prazo mínimo (e, às vezes, máximo) para o exercício da opção.
Exercício da opção pelo beneficiário. Ultrapassado o período mínimo (vesting period), o beneficiário pode adquirir as ações pelo preço previamente acordado. A aquisição, evidentemente, é voluntária e ocorrerá apenas se for vantajosa (ou seja, se o valor de aquisição for inferior ao valor das ações no mercado naquela data).
Alienação dos títulos pelo beneficiário. Após exercer a opção de compra, o beneficiário pode decidir vender as ações. Esse momento pode ser delimitado por uma cláusula de lock-up, que impede a venda até o término do prazo estabelecido contratualmente.
Esses três momentos são relevantes porque influenciam diretamente a definição do fato gerador e, consequentemente, a base de cálculo dos tributos. Além disso, as condições específicas de cada plano são consideradas essenciais para identificar sua natureza jurídica.
Tradicionalmente, as turmas do Carf diferenciam a natureza mercantil da remuneratória com base na análise de três elementos:
Onerosidade: verifica-se se as ações são adquiridas com os recursos do empregado ou se são concedidas gratuitamente pelas companhias;
Voluntariedade: considera-se se, uma vez ofertado o plano, o participante tem absoluta autonomia para decidir se aqueles títulos integrarão ou não seu patrimônio, sem qualquer interferência da companhia; e
Risco: avalia-se o risco como elemento inerente a uma transação mercantil.
Uma vez definida a natureza jurídica, a discussão avança para o momento de tributação como fator determinante para o exame do regime tributário do imposto de renda: no momento do exercício da opção de ações (supostamente quando o beneficiário teve o acréscimo patrimonial pelo recebimento das ações, consideradas remuneração) ou somente no momento da alienação das ações (com base na premissa de que só há acréscimo patrimonial quando há ganho na alienação das ações, caracterizando uma operação típica de capital)? Essa última tese foi a acolhida pela 1ª Seção do STJ.
Em julgamento no dia 11 de setembro de 2024, a 1ª Seção decidiu pelo não provimento do REsp 2.069.644/SP e pelo provimento do REsp 2.074.564/SP, para afastar a cobrança de IRPF sobre o valor da oferta de ações. Na ocasião, foram fixadas as seguintes teses:
a) No regime de stock option plan (artigo 68, §3º, da Lei 6.404/76), devido à sua natureza mercantil, não incide o IRPF no ato de aquisição de ações da companhia outorgante da opção de compra, pois não ocorre acréscimo patrimonial para o optante adquirente.
b) Incidirá o IRPF, porém, quando o adquirente de ações no stock option plan vier a revendê-las com ganho de capital.
Merecem destaque alguns pontos do voto vencedor, prolatado pelo ministro Sérgio Kukina:
a aquisição de ações com “deságio” (diferença entre o preço acordado e o valor de mercado) não equivale a renda, pois nesse momento não há riqueza nova e realizada advinda do patrimônio do particular;
a aquisição das ações é ato praticado pelo beneficiário, sem qualquer ação da companhia que justifique uma obrigação de retenção para fins de imposto de renda; e
a aquisição de ações é ato de compra e venda, portanto, ato mercantil, desde que respeitadas as características essenciais, sendo que apenas quando da alienação é que se pode falar sobre disponibilidade da renda.
O ministro Afrânio Vilela asseverou em seu voto que, no plano de oferta de ações, “presente a desenganada natureza mercantil”, só se verifica acréscimo patrimonial quando da alienação. Segundo o ministro, o plano de opção de compra de ações tem natureza jurídica de contrato mercantil, em que estão presentes as características inerentes a esse instituto.
Portanto, a decisão da Corte Superior consolidou a natureza mercantil dos planos de oferta de ações e, considerando o objeto dos recursos especais interpostos, decidiu pelo afastamento de exigência de imposto de renda no momento do exercício da oferta, reconhecendo a tributação apenas no ato de alienação das ações. Para o STJ, a questão está decidida.
Retomemos a análise aos julgamentos do Carf, após a fixação do Tema 1.226 pelo STJ.
O artigo 99 do atual Regimento Interno do Carf (Ricarf) vincula os conselheiros à tese fixada em sede de repetitivo. Embora sejam bastante óbvias as razões da vinculação, a disposição inserida na norma infralegal é a única do ordenamento vigente que resulta na obrigação de reprodução do entendimento dos tribunais superiores em precedentes qualificados nas decisões do órgão administrativo.
Os artigos 927, III, e 928, II, do Código de Processo Civil estabelecem a obrigação de que juízes e tribunais (judiciais) observem os acórdãos proferidos em julgamento repetitivos. Já os artigos 19, VI, e 19-A da Lei 10.522/02 tratam da vinculação de procuradorias e auditores fiscais às decisões proferidas pelos tribunais superiores, sem fazer menção ao órgão de julgamento.
É evidente que, em atenção aos princípios da segurança jurídica, do interesse público, da coerência e da eficiência da administração pública, a observância das decisões dos tribunais superiores é a regra. Entretanto, quando se trata de vinculação – no sentido de reprodução obrigatória – há limitação à hipótese positivada.
Assim, de acordo com o artigo 99 do Regimento Interno do Carf, a reprodução do posicionamento dos tribunais superiores pelo Carf depende dos seguintes critérios:
Existência de um posicionamento manifestado em sede de recursos repetitivos e/ou repercussão geral;
Ocorrência do trânsito em julgado; e
No caso de decisão do STJ, que ela não esteja sujeita à revisão pelo STF.
Assim, a tese fixada pelo STJ encerra a controvérsia sobre a natureza jurídica dos incentivos para fins de imposto de renda, dispondo que o simples exercício da opção de compra de ações não é fato gerador de imposto de renda, já que não há acréscimo patrimonial na transferência onerosa do bem ao patrimônio do contribuinte.
Para as contribuições previdenciárias, porém, não há reprodução obrigatória, devido à própria limitação da tese fixada.
Essa linha de entendimento foi confirmada no Acórdão 2401-012.044, emitido em outubro de 2024, ou seja, após a publicação do acórdão do STJ. Nesse julgamento, examinou-se a cobrança de contribuição previdenciária supostamente incidente sobre planos de ações ofertados por determinada companhia a seus colaboradores.
O voto vencido do conselheiro relator Matheus Soares Leite, analisando os fatos do caso concreto, deu provimento ao recurso voluntário e afastou a cobrança por entender que os planos ofertados mantêm as características de voluntariedade, onerosidade e risco, o que revelaria a natureza mercantil do plano.
Como reforço às razões – obter dictum – o conselheiro relator destacou a decisão proferida pelo STJ no Tema 1.226, salientando o reconhecimento da natureza mercantil da compra de ações nos planos oferecidos pelas companhias a seus executivos.
No entanto, o voto vencedor, que defendeu a incidência de contribuição previdenciária por entender que o plano tem natureza remuneratória, também destacou a existência da decisão do STJ, mas rejeitando a vinculação por se tratar: 1) de decisão não transitada em julgado; e 2) por não se referir expressamente à contribuição previdenciária.
Ou seja, mesmo após a decisão do STJ, o Carf manteve a construção histórica de investigar os elementos de voluntariedade, onerosidade e risco para definir a natureza jurídica dos planos.
Vale reiterar que os votos proferidos nos repetitivos analisados pelo Tema 1226 indicam a natureza jurídica mercantil dos planos de oferta de ações “ao menos quando respeitadas suas características gerais”, ou seja, quando “presente a desenganada natureza mercantil”.
Assim, da decisão do STJ, nos parece que a natureza mercantil do plano de oferta de ações é uma premissa a ser aplicada desde que não haja um desvirtuamento das características e dos critérios, o que abriria uma nova seara de discussões.
Em suma, embora a decisão do STJ sob a sistemática dos recursos repetitivos seja um precedente determinante e vinculante para o Carf – nos limites acima expostos –, ainda persiste um espaço relevante de controvérsia, no qual o exame das características essenciais do plano de ações ainda deverá ser ultrapassado.
De toda forma, deve-se lembrar que “o papel do precedente é de reduzir o âmbito de equivocidade inerente ao Direito, viabilizando a sua maior cognoscibilidade”, de modo que “o foco direto aí é a ordem jurídica e a sociedade civil como um todo”. Sua vinculação vertical (dentro da própria corte) e horizontal (demais instâncias jurisdicionais), portanto, está diretamente ligada à segurança jurídica, pilar do Estado Constitucional.
Assim, para que bem realize seu papel de apaziguador de conflitos tributários, dentro do atual sistema de precedentes que temos no Brasil, é fundamental que o Carf observe a ratio decidendi do Tema 1.226, aplicando-a como premissa no caso concreto para, então, fazer a verificação dos elementos de fato, para o julgamento da incidência de contribuições previdenciárias sobre stock options.
Fonte: Conjur