No último dia 16 de agosto, o ministro Flávio Dino, do STF (Supremo Tribunal Federal), proferiu uma decisão monocrática que impactou o cenário político e orçamentário brasileiro. Em resposta a três ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 7.688, 7.695 e 7.697) movidas pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), o ministro suspendeu a execução de todas as emendas parlamentares impositivas até que o Congresso estabeleça regras que garantam a transparência e a rastreabilidade desses recursos. A decisão é significativa tanto pelo impacto imediato, quanto pelo que revela sobre a necessidade de reformulação dos mecanismos de controle e fiscalização do orçamento público no Brasil.
As emendas impositivas, especialmente na modalidade conhecida como “emenda Pix”, têm sido objeto de intensos debates. Criadas pela Emenda Constitucional nº 105/2019, permitem a transferência direta de recursos da União para estados, municípios e o Distrito Federal sem a necessidade de convênios, o que, na prática, dificultou a fiscalização e abriu brechas para a má utilização dos recursos públicos. O ministro Flávio Dino, em sua decisão, enfatizou que a discricionariedade conferida aos parlamentares na indicação desses recursos não pode se transformar em “arbitrariedade”, desconsiderando os princípios constitucionais que regem a administração pública, conforme estabelecido no artigo 37 da Constituição.
A decisão de Dino foi ainda mais além ao determinar que a Controladoria-Geral da União (CGU) realizasse uma auditoria em todas as emendas Pix executadas em 2024, além de uma verificação dos repasses realizados desde 2020. Essa medida visou a mapear e corrigir possíveis irregularidades. Em sua decisão, clara e direta, o ministro asseverou:
Nesse sentido, deve-se compreender que a transparência requer a ampla divulgação das contas públicas, a fim de assegurar o controle institucional e social do orçamento público. Por sua vez, a rastreabilidade compreende a identificação da origem e do destino dos recursos públicos. Sobre o ponto, aliás, destacou o Min. Roberto Barroso em voto proferido na ADPF nº. 854, que “em uma democracia e em uma república não existe alocação de recurso público sem a clara indicação de onde provém a proposta, de onde chega o dinheiro” (e-doc. 369 da ADPF nº. 854). (Min. Flávio Dino, ADI nº 7688, 2024)
A decisão monocrática gerou uma reação imediata no Congresso Nacional, com os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, recorrendo ao presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, pedindo a revisão da liminar. Eles argumentaram que as decisões monocráticas, proferidas fora de um contexto de urgência, transcendiam o debate sobre a falta de transparência das emendas Pix e atingiam de forma exorbitante outras modalidades de emendas, como as de comissão.
Barroso, no entanto, negou o recurso e manteve a liminar de Dino, reiterando a necessidade de que o plenário do STF se pronunciasse sobre a questão. Em sessão virtual extraordinária realizada no próprio dia 16 de agosto, os 11 ministros do STF votaram por unanimidade pela manutenção da suspensão das emendas impositivas até que o Congresso editasse novas regras de transparência.
Após uma intensa mobilização política que se seguiu à decisão, menos de uma semana depois houve uma reunião na Presidência do Supremo. Ocorrido no dia 20 de agosto de 2024, o encontro contou com a presença dos presidentes do Senado, da Câmara dos Deputados, além do ministro da Casa Civil, do advogado-geral da União e do procurador-geral da República. Com a participação de todos os ministros do STF, a reunião teve como objetivo central estabelecer um consenso sobre a necessidade de implementar critérios rigorosos de transparência, rastreabilidade e correção na execução das emendas parlamentares impositivas.
Após horas de deliberações, foi acordado que as emendas individuais de transferência especial (emendas Pix) seriam mantidas, mas com a imposição de que haja uma identificação antecipada do objeto e a concessão de prioridade para obras inacabadas, além de uma prestação de contas rigorosa perante o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU). Também foi decidido que as emendas de bancada deverão ser destinadas a projetos estruturantes nos estados e no Distrito Federal, enquanto as emendas de comissão serão voltadas para projetos de interesse nacional ou regional, definidos em comum acordo entre o Legislativo e o Executivo.
O contexto das emendas impositivas e a decisão do STF devem ser compreendidos à luz dos princípios que regem o direito financeiro e, mais especificamente, o processo orçamentário. José Afonso da Silva, em seu clássico “Curso de Direito Constitucional Positivo”, esclarece que “os princípios orçamentários foram elaborados pelas finanças clássicas, destinados, de um lado e principalmente, a reforçar a utilização do orçamento como instrumento de controle parlamentar e democrático sobre a atividade financeira do Executivo, e de outro lado, a orientar a elaboração, aprovação e execução do orçamento” (SILVA, 2013, p. 75). Dentre esses princípios, destacam-se a exclusividade, a universalidade, a unidade, a anualidade, a programação, o equilíbrio orçamentário e, sobretudo, a transparência.
O princípio da transparência é essencial para assegurar que o orçamento público seja gerido de maneira clara e acessível, permitindo que a sociedade acompanhe e fiscalize a aplicação dos recursos públicos. A diretriz é reforçada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que, em 2015, publicou um conjunto de dez princípios orçamentários voltados para a boa governança.
O documento ressalta que a efetivação da transparência orçamentária requer que os relatórios relativos ao orçamento público sejam claros e precisos, com explicações detalhadas sobre o impacto das medidas orçamentárias tanto nas receitas quanto nas despesas públicas. Além disso, esses documentos devem ser publicados de maneira completa e rotineira, conferindo amplo acesso aos cidadãos, às organizações civis e a outras partes interessadas. No Brasil, essa exigência é fundamental para garantir que os recursos públicos sejam utilizados de maneira eficiente e em conformidade com os princípios constitucionais.
A falta de transparência na aplicação das emendas impositivas, especialmente na modalidade Pix, compromete a eficiência da gestão pública e mina a já combalida confiança da população nas instituições democráticas. Embora tenham sido criadas com o louvável objetivo de fortalecer o poder Legislativo e garantir a execução das emendas parlamentares, acabaram por se tornar um instrumento de opacidade e clientelismo, especialmente na modalidade das emendas Pix.
A suspensão das emendas impositivas pelo STF representou, portanto, uma tentativa necessária para corrigir o desvirtuamento de um sistema que, ao longo dos anos, se afastou dos princípios constitucionais. Se o Congresso se comprometer a editar regras que garantam a transparência e o controle dessas emendas, poderemos estar no caminho para uma gestão menos injusta e ineficiente dos recursos públicos. Se essa oportunidade for desperdiçada, o País corre o grave risco de perpetuar práticas que, historicamente, têm contaminado a democracia brasileira.
A sociedade, que tem sido reiteradamente lesada por práticas de corrupção e má gestão dos recursos públicos, espera que essa decisão do STF e a sensibilização dos três poderes seja o primeiro passo de uma reforma muito mais ampla, que traga mais transparência, eficiência, maior capacidade de investimentos ao Estado e justiça ao sistema orçamentário do país. Cabe agora ao Congresso demonstrar que está à altura desse desafio, editando regras efetivas que assegurem a correta aplicação dos recursos públicos e que fortaleçam a confiança da população nas instituições democráticas.
Fonte: Conjur