Fala-se muito do que serão o contencioso e o volume de disputas judiciais pós-reforma tributária. É muito difícil imaginar que uma reforma constitucional que incluiu dezenas e dezenas de novos dispositivos tributários na Constituição Federal, e que será regulamentada por centenas de dispositivos complementares será um marco da redução da litigiosidade tributária. Ainda assim, parece que este é o pensamento de algumas pessoas.
É só considerarmos, por exemplo, os novos parágrafos 3º e 4º do artigo 145 da Constituição Federal, ainda tão poucos debatidos. Que argumentos e questionamentos judiciais podem surgir a partir da simples previsão de que o Sistema Tributário Nacional deverá observar o princípio de defesa do meio ambiente? Que tipo de questionamento constitucional surgirá da previsão de que “as alterações na legislação tributária buscarão atenuar efeitos regressivos”. Uma modificação legislativa que acentua os efeitos regressivos do Sistema Tributário Nacional será constitucional? Um novo benefício fiscal, de qualquer tributo, para um bem, serviço ou atividade poluidora será compatível com o § 3º do artigo 145?
Tenho dito e redito que é muito interessante que se tente estimar os efeitos econômicos da reforma tributária. Entretanto, ao fim e ao cabo, quem interpretará os novos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais serão os operadores do Direito, os quais, muito provavelmente, não pautarão suas interpretações nas opiniões dos envolvidos na elaboração dos textos, nem na experiência internacional ou nas contas, cálculos e estimativas da equipe econômica deste ou daquele governo – muitos dos quais, durante todo o processo de debate, jamais foram apresentados.
Nessa linha de ideias, cremos ser muito cedo para se declarar a vitória da reforma tributária contra a hiperlitigiosidade que marca nossa tradição no campo tributário. Há muito o que se aguardar, ainda mais se levarmos em conta que sequer temos as leis complementares aprovadas e em vigor.
Entendo que uma questão que será central para definirmos o tamanho do contencioso pós-reforma tributária vai ser a delimitação do papel das leis complementares que darão concretude às mudanças trazidas pela Emenda Constitucional nº 132/2023.
Com efeito, a tradição do Direito Tributário brasileiro atribuiu às leis complementares um papel bastante limitado na delimitação da materialidade dos impostos cuja competência estava prevista na Constituição. Durante décadas, multiplicaram-se disputas judiciais cujo fundamento primeiro era exatamente a definição de conceitos constitucionais que pautariam de forma completa as disposições das leis complementares.
De outro lado, parece que a Emenda Constitucional nº 132/2023 foi elaborada tendo como premissa uma espécie de competência ampla das leis complementares para densificar os dispositivos introduzidos na Constituição.
Esta, segundo vemos, será a primeira grande questão constitucional a ser solucionada no contexto da nova “Constituição Tributária”, e a resposta a ela será determinante do volume do contencioso tributário pós-reforma.
Vemos aqui, na árvore de possibilidades, duas opções principais:
ou a tradição tributária nesta matéria será mantida, e buscaremos, em primeiro lugar, a definição de cada termo utilizado na Constituição para, com base nela, avaliar a constitucionalidade dos dispositivos previstos nas leis complementares;
ou, em uma guinada de modelo, poderá o Supremo Tribunal Federal passar a reconhecer uma competência mais ampla de densificação constitucional das leis complementares, vendo o Texto Constitucional como a fonte de padrões a serem concretizados, com maior liberdade, pelo legislador complementar.
Se a interpretação do Supremo Tribunal Federal, em relação a este tema, for esta segunda — competência mais ampla de densificação constitucional pelas leis complementares — boa parte do contencioso constitucional pós-reforma será esvaziada. Sendo, as leis complementares, instrumentos de concretização de dispositivos constitucionais que estabeleçam regras de competência mais fluidas, somente situações de desvio grosseiro dos limites de tais competências gerariam a potencial inconstitucionalidade da previsão complementar.
Nada obstante, como apontamos, essa não é a tradição do nosso Direito Tributário. A grande maioria dos autores e autoras de nossa literatura tributária vai ver nas regras de atribuição de competência limites estritos ao seu exercício, de modo que a liberdade de conformação das leis complementares neste campo seria bastante reduzida.
Caso essa posição se mantenha predominante em nosso Direito Tributário, prevalecendo na interpretação judicial — notadamente nas decisões futuras do STF —, podemos esperar infindáveis controvérsias constitucionais referentes aos dispositivos das leis complementares concretizadoras da reforma tributária.
Conseguimos avaliar as consequências da adoção de uma ou de outra dessas posturas, tomando como exemplo o caso do Imposto Seletivo e a proposta de sua instituição no Projeto de Lei Complementar nº 68/2024 (PLP 68).
Seria possível trazermos diversos aspectos deste tributo como potencialmente geradores de questionamentos. Contudo, vamos fixar nossa atenção em apenas um: o fato gerador.
De acordo com a regra de competência prevista no inciso VIII do artigo 153 da Constituição, a União pode instituir imposto que tenha como fato gerador a “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar”.
Vê-se que a materialidade tributária do Imposto Seletivo limita a competência da União à tributação de quatro fatos econômicos: a produção, a extração, a comercialização e a importação.
Pois bem, ao analisarmos o PLP 68 notamos, logo de início, que o projeto não se preocupou em definir o fato gerador do imposto, limitando-se o texto a repetir a materialidade prevista na constituição em seu artigo 406, caput.
O artigo 410 do PLP 68 é que delimitará, com um pouco mais de detalhe, os fatos geradores do Imposto Seletivo. Contudo, este dispositivo se apresenta não como uma previsão do aspecto material da hipótese de incidência do imposto, mas sim do seu aspecto temporal, fazendo referência ao “momento da ocorrência do fato gerador”. Este artigo 410 tem a seguinte redação:
“Art. 410. Considera-se ocorrido o fato gerador do Imposto Seletivo no momento:
I – da primeira comercialização do bem;
II – da arrematação em hasta pública;
III – da transferência não onerosa de bem mineral extraído ou de bem produzido;
IV – da incorporação do bem ao ativo imobilizado pelo fabricante;
V – da exportação de bem mineral extraído;
VI – do consumo do bem pelo produtor-extrativista ou fabricante; ou
VII – do fornecimento ou do pagamento do serviço, o que ocorrer primeiro.”
Partindo de uma interpretação estrita da Constituição, cremos que apenas as incidências previstas nos incisos I e VII deste artigo são claramente constitucionais. Todas as demais variam entre o possivelmente inconstitucional ao claramente incompatível com a regra prevista no inciso VIII do artigo 153.
Uma arrematação em hasta pública pode até ser considerada equiparável a uma comercialização, embora não nos pareça impossível imaginar contribuintes indo à Justiça com o argumento de que a Constituição jamais previu este fato econômico como tributável pelo Imposto Seletivo.
Por outro lado, se a constitucionalidade da arrematação poderia ser salva pela interpretação, parece-nos muito difícil justificar que uma transferência não onerosa seja considerada “extração, produção, comercialização ou importação”. O mesmo seria possível dizer da incorporação de bem ao ativo imobilizado e do consumo de bem produzido ou extraído.
É importante lembrarmos, aqui, que o Supremo interpretando o artigo 149, § 2º, I, da Constituição Federal, julgou constitucionais a incidência da Contribuição Social sobre o Lucro e a da CPMF sobre lucros e movimentações financeiras decorrentes de operações de exportação.
Naquela oportunidade, estabeleceu a Suprema Corte que se a Constituição havia desonerado da incidência das contribuições as receitas decorrentes de exportação, somente este fato econômico seria imune. Todos os fatos econômicos subsequentes não poderiam ser alcançados pela regra de incompetência, mesmo que, inquestionavelmente, o elemento positivo do lucro seja a receita.
Ao adotarmos o mesmo raciocínio na análise do inciso VIII do artigo 153 da Constituição Federal, seremos forçados a concluir que se a competência atribuída pelo Texto Constitucional foi para a instituição de imposto sobre a produção, este não poderia gravar fatos econômicos subsequentes, como a incorporação do bem produzido ao ativo imobilizado da pessoa jurídica.
Nada obstante, de todos os incisos previstos no artigo 410 do PLP 68, o mais absurdo certamente é o inciso V, que estabelece a incidência do Imposto Seletivo quando da “exportação de bem mineral extraído”.
Ora, a exportação é fato econômico imune à incidência do Imposto Seletivo, como previsto no inciso I do § 6º do artigo 153 da Constituição. Consequentemente, ela jamais poderia ser considerada momento da ocorrência do fato gerador deste imposto.
É possível que este inciso tenha decorrido de uma interpretação, segundo vemos, equivocada, do inciso VI do § 6º do artigo 153 da Constituição, segundo o qual “na extração, o imposto será cobrado independentemente da destinação, caso em que a alíquota máxima corresponderá a 1% (um por cento) do valor de mercado do produto”.
Cremos que, quando este dispositivo estabelece que o Imposto Seletivo poderá incidir, na extração, independentemente da destinação do bem, ele não autoriza a incidência sobre a exportação do bem extraído, mas, sim, prevê que a exportação subsequente não seria justificativa para que se estabelecesse a imunidade da extração. Não existisse este inciso VI, seria fácil imaginar contribuintes cuja produção fosse 100% exportada, buscando no Poder Judiciário o reconhecimento da imunidade de sua atividade de extração.
Parece-nos incompreensível que um proposta de instituição de um tributo novo seja redigida com tantas potenciais inconstitucionalidades. Realmente, somente a crença cega — ou ingênua — no papel da lei complementar e na sua amplitude de regulação poderia explicar um texto com tantas controvérsias à espera apenas da entrada em vigor da lei complementar para chegarem ao Poder Judiciário.
Voltando à nossa provocação anterior, o destino do Imposto Seletivo vai certamente depender da compreensão sobre o alcance da parte final do inciso VIII do artigo 153 da Constituição: “nos termos de lei complementar”. Caso a reforma tributária inaugure uma nova tradição jurídica sobre o papel da lei complementar na delimitação das competências tributárias, pode ser que as questões que apontamos acima sequer sejam objeto de discussão casuística.
Nada obstante, imaginando por um instante que nossa tradição tributária se mantenha inabalada, cada um desses incisos do artigo 410 do PLP 68 teria sua constitucionalidade avaliada à luz da interpretação da regra de competência prevista no artigo 153, VIII, tendo o legislador complementar limitadíssima liberdade de conformação do texto constitucional.
Veja-se que, nesta breve provocação, consideramos apenas um artigo do PLP 68 e, somente em relação a este único dispositivo, as possibilidades de questionamentos constitucionais são várias. É uma ilusão pensar que a reforma tributária, uma vez em vigor, será interpretada por economistas, engenheiros, políticos de formação variada, etc.
Tão logo estejam todos os diplomas legais em vigor, os advogados, acadêmicos, procuradores, auditores fiscais de todas as esferas federativas, julgadores de todas as instâncias, etc. assumirão o controle do processo de densificação do novo Sistema Tributário Nacional. Qualquer um que diga que sabe com certeza qual será o nível de litigiosidade desse novo modelo está enganando a si próprio e a terceiros.
Fonte: Conjur