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Ano : 2009 Autor : Dra. Júlia Reis

O sistema de responsabilidade civil brasileiro e a teoria dos punitive damages

Não obstante as intenções insculpidas na Carta Maior, em seu art. 5.º, XXXII, que culminaram na prolação da Lei n.º 8.078/1990, os consumidores brasileiros ainda se encontram à mercê dos abusos praticados pelas grandes empresas, que desrespeitam seus direitos mais básicos com freqüência assustadora, e do Poder Judiciário brasileiro, que, além de notoriamente moroso, apega-se a conceitos há muito ultrapassados, deixando de concretizar direitos constitucionalmente previstos.


A teoria dos punitive damages, oriunda do direito norte americano, visa, ao lado da reparação por danos morais e de outras naturezas, fixar um valor que sirva como um fator de desencorajamento de condutas posteriores semelhantes àquela que chegou ao conhecimento do poder judiciário. É sabido por todos que tais condutas abusivas são reiteradamente reproduzidas pelas grandes empresas, já que não há sanção que possa reprimir tais abusos. Em outras palavras: é menos dispendioso pagar quantias irrisórias em condenações judiciais do que investir em melhorias na empresa, de forma a evitar o repetimento de abusos que lesam o consumidor. Em recente entrevista publicada no site Espaço Vital, o juiz Mauro Caum Gonçalves assim asseverou:

 

“Pelo comportamento que esses conglomerados adotam, é mais vantajoso arriscar a lesão em massa e responder apenas a uma meia dúzia de processos. A propósito, eu desenvolvo um raciocínio em termos de Brasil inteiro: se de cada um milhão de pessoas lesadas em R$ 1,00 diariamente - o que dará R$ 1 milhão de reais por dia, ou R$ 30 milhões ao mês - apenas 1% desse universo, ou 10 mil pessoas,   forem reclamar à Justiça reclamar e ganharem, cada uma, 10 mil reais, isso vai totalizar R$ 10 milhões. É fácil concluir que vai ter proporcionado ao violador, por baixo, 20 milhões de ganhos ao mês.”[1]

 

Por outro lado, não podemos esquecer que, de fato, a teoria em comento não tem aplicabilidade no cenário nacional se a analisarmos tão-somente pelo viés legal, visto que o sistema de responsabilidade civil brasileiro não autoriza esse tipo de condenação patrimonial. Apesar desta dificuldade, todavia, não se deve simplesmente ignorar a existência dos punitive damages e os benefícios que sua aplicação, de forma criteriosa, têm o condão de trazer, sob diversos aspectos além do jurídico, tais como o social e econômico.


A Jurisprudência ocupa-se tão somente em afirmar que tal teoria não tem aplicabilidade no cenário jurídico brasileiro, não se preocupando em analisar os efeitos em grande escala que tal comportamento provoca.


Todavia, esse entendimento não é unânime. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, confirmando sua vocação de trazer novos entendimentos para velhos problemas, enxerga nos punitive damages uma forma de condenação que, ao lado de indenizar os danos sofridos, possui o caráter pedagógico de evitar danos futuros praticados pela mesma empresa, como podemos comprovar dos breves trechos de acórdãos abaixo colacionados:

 

Penso ser caso típico de aplicação da doutrina dos punitive damages, timidamente importada do direito norte-americano. O desmazelo flagrante, a impessoalidade no trato de questão tão relevante para o consumidor de crédito, o desrespeito a ordem judicial e a falta de explicações revelou que, para o Banco, é mais barato suportar os riscos da falha em seus serviços do que corrigi-los.[2]

 

Algumas seguradoras têm o mau hábito de empregar artifícios contábeis, entre outros, para aviltar o valor da indenização e, assim, forrar seus cofres com as sobras. Esta circunstância reclama aplicação da teoria dos punitive damages. É preciso desencorajar a repetição de semelhantes condutas através de indenizações consideráveis. O valor pode parecer excessivo, mas é inferior ao capital segurado devidamente corrigido e penso que as circunstâncias do caso concreto autorizam sua fixação nesse patamar.[3]

 

Pertinente destacar a relevância do tema em assuntos como inscrições indevidas em órgãos de restrição ao crédito, vícios em produtos, direito de escolha suprido, venda casada e desastres aéreos, dentre outros abusos das mais diversas naturezas. No caso dos acidentes aéreos existe detalhe de suma importância: as operadoras mantêm contratos de seguro em valores vultosos, o que permite que, em caso de desastres, as indenizações sejam integralmente cobertas pelas operadoras, o que não justifica sua resistência em pagar os valores devidos. Nesse particular, a Edison Freitas de Siqueira tem atuado combativamente no intuito de cobrar das operadoras o que é devido, em razão de acidentes que culminaram na morte de centenas de pessoas, por culpa exclusiva daquelas empresas.


Importa ressaltar, também, que a aplicação ampla e irrestrita do instituto das punitive damages encontra óbice no próprio texto legal brasileiro, o qual, no artigo 884 do Novo Código Civil traz como principio informador do direito a vedação ao enriquecimento sem causa. Frise-se que este é o argumento central utilizado por aqueles julgadores que renegam a aplicação de tal tese às demandas que chegam à apreciação do poder judiciário.


Não nos parece, todavia, ser este o entendimento mais acertado. Ao dar ensejo à utilização da referida teoria norte-americana, o poder judiciário dá um importante passo em direção à concretização de direitos constitucionalmente garantidos, dentre os quais a proteção ao consumidor, que é, notadamente, o elo mais fraco na relação de consumo. O ponto principal desta teoria não é pura e simplesmente indenizar o reclamante (que já recebeu valores a titulo de danos materiais e/ou morais), mas sim “educar” o reclamado, de forma que este seja desencorajado a repetir tais condutas danosas no futuro. Obviamente, não se está a afirmar que a figura dos punitive damages seja aplicada de forma irrestrita, ao bel talante do julgador, mas sim dentro de limites constitucionalmente postos e que atendam ao seu fim último: deter futuros procedimentos nocivos.


Entendemos, portanto, ser de suma importância a modernização do pensamento de alguns julgadores, a exemplo de uma minoria que já vem aplicando a teoria em análise.


O Superior Tribunal de Justiça, honrando sua tradição conservadora, não vê com bons olhos a importação da teoria do direito norte-americano, como fica claro no trecho abaixo:

 

Por certo, devido à influência do direito norte-americano muitas vezes invoca-se pedido na linha ou princípio dos "punitive damages". "Punitive damages" (ao pé da letra, repita-se o óbvio, indenizações punitivas) diz-se da indenização por dano, em que é fixado valor com objetivo a um só tempo de desestimular o autor à prática de outros idênticos danos e a servir de exemplo para que outros também assim se conduzam. Ainda que não muito farta a doutrina pátria no particular, têm-se designado as "punitive damages" como a "teoria do valor do desestímulo" posto que, repita-se, com outras palavras, a informar a indenização, está a intenção punitiva ao causador do dano e de modo que ninguém queira se expor a receber idêntica sanção. No caso do dano moral, evidentemente, não é tão fácil apurá-lo. Ressalte-se, outrossim, que a aplicação irrestrita das "punitive damages" encontra óbice regulador no ordenamento jurídico pátrio que, anteriormente à entrada em vigor do Código Civil de 2002, vedava o enriquecimento sem causa como princípio informador do direito e após a novel codificação civilista, passou a prescrevê-la expressamente, mais especificamente, no art. 884 do Código Civil de 2002. Assim, o critério que vem sendo utilizado por esta Corte na fixação do valor da indenização por danos morais, considera as condições pessoais e econômicas das partes, devendo o arbitramento operar-se com moderação e razoabilidade, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido e, também, de modo que sirva para desestimular o ofensor a repetir o ato ilícito. [4]

 

Ainda, em reiterados e diversos julgamentos, assentou o STJ que, no ordenamento jurídico pátrio, a indenização de perdas e danos não possui caráter punitivo. Ora, ao decidir nesse sentido, aquela corte perde a oportunidade de dar um novo caráter aos processos por perdas e danos, o que possibilitaria uma condenação vultosa às empresas que possuem como prática institucionalizada o desrespeito e abuso para com seus consumidores. Tal entendimento, por certo, ajudaria a desafogar muitos tribunais brasileiros, tendo em vista que processos indenizatórios em que as empresas figuram como demandadas são os principais a abarrotar as serventias judiciais, e mais ainda, que o caráter pedagógico dos punitive damages tem o fito de inibir semelhantes práticas futuras.



[1] Fonte: www.espacovital.com.br. Acessado em 24.08.2009.

[2] Apelação Cível n.º 70003050531, 6.ª Câmara Cível do TJRS, Rel. Des. João Batista Marques Tovo, julgado em 29.10.2003.

[3] Apelação Cível n.º 70005349865, 6.ª Câmara Cível do TJRS, Rel. Des. João Batista Marques Tovo, julgado em 10.12.2003.

[4] Recurso Especial n.º 401.358 – PB, STJ, Rel. Min. Carlos Fernando Mathias, julgado em 05.03.2009.


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