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24 de outubro de 2024Uma das patologias que torna o nosso sistema tributário um dos mais complexos do mundo é a desarmonia de conceitos utilizados nas suas normas, associada à polissemia de expressões empregadas pelo legislador.
São incontáveis as divergências e os litígios daí advindos. O desperdício de tempo, recursos e energia para navegar nesse cipoal é incomensurável. E nem o tempo é capaz de curar essas feridas. Por vezes, polêmicas resolvidas há décadas, repentinamente ressurgem como verdadeiras assombrações de uma sequência de um filme de terror “trash”.
No que se refere à tributação de transações com o exterior, dois exemplos são marcantes: (1) a desarmonia quanto ao conceito de exportação de serviços; e (2) a imprecisão de regras para definição do destino da importação de bens e serviços.
O objetivo aqui é mirar o futuro e examinar se estamos caminhando bem ou mal na regulamentação da reforma tributária, à luz do texto do Projeto de Lei Complementar nº 68/2024 aprovado pela Câmara dos Deputados e sob a revisão do Senado.
Com relação às importações de mercadorias, já pudemos demonstrar, juntamente com Tatiana Caroline de Mesquita, o quanto oscilou a jurisprudência do Supremo Tribunal ao discutir qual o sujeito ativo do ICMS em importações diretas e indiretas.
Encontramos ao menos quatro ciclos de interpretação do texto constitucional pelo STF, até se chegar ao tema de repercussão geral nº 520, no qual se reconheceu que a legislação complementar é insuficiente, havendo ainda hipóteses de conflito não resolvidas. E isto porque a Lei Complementar nº 87/1996 “disse menos do que deveria” ao regulamentar o artigo 155, § 2º, inciso IX, alínea ‘a’, da Constituição.
Olhando para o texto atual do PLP 68, encontramos no seu artigo 68 que, para efeitos do IBS e da CBS sobre as importações de bens materiais, o local da importação corresponderá: (1) ao local da “entrega” dos bens ao “destinatário final”; (2) ao “domicílio principal” do adquirente de mercadoria entrepostada; ou (3) ao local onde ficou caracterizado o extravio.
O artigo 11, no seu inciso I, define que se considera local da operação o local da “entrega” ou da “disponibilização” do bem ao destinatário. Para esse fim, o § 1º diz que:
(1) no caso de operação não presencial, considera-se como local da entrega ou disponibilização do bem ao “destinatário”, o destino final indicado pelo “adquirente”: (1.1) ao fornecedor, caso o serviço de transporte seja de responsabilidade do fornecedor; ou (1.2) ao terceiro responsável pelo transporte, caso o transporte seja por conta do adquirente;
(2) se a operação envolver a aquisição de veículo automotor, o local da entrega será o local do “domicílio principal” do destinatário; e
(3) se o bem material for adquirido em licitação/hasta pública ou for encontrado em situação irregular por falta de documentação fiscal idônea, o local da “entrega” ou “disponibilização” será aquele em que o bem for encontrado.
Já o § 3º do artigo 11 traz definições detalhadas de que se considera como local do “domicílio principal” do destinatário:
(1) o local constante do cadastro do destinatário como contribuinte de IBS/CBS, devendo esse corresponder: (1.1) no caso de pessoa física, ao local da sua habitação permanente ou, se inexistente ou havendo mais de uma habitação permanente, o local onde as suas relações econômicas forem mais relevantes; e (1.2) para as pessoas jurídicas ou entidades sem personalidade jurídica, o local de cada estabelecimento para o qual seja fornecido o bem;
(2) na hipótese de destinatário não cadastrado, o local que resultar da combinação de ao menos dois dos seguintes critérios, à escolha do fornecedor, desde que não conflitantes: (a) endereço do destinatário declarado ao fornecedor; (b) endereço do destinatário obtido por coleta de outras informações comercialmente relevantes no curso da execução da operação; (c) endereço do adquirente constante do cadastro do arranjo de pagamento usado na operação; e (d) endereço do IP do dispositivo utilizado para a contratação ou obtido por emprego de geolocalização; e
(3) residualmente, o endereço do destinatário declarado ao fornecedor.
Como se vê, o texto do PLP 68 é muito mais detalhado do que a LC 87, o que reforça a conclusão sobre a fragilidade da legislação atual relativa ao ICMS. Ainda assim, há pontos obscuros relevantes, em especial quando à ausência de definição do conceito de “destinatário final” empregado no artigo 68, como bem apontado por Renata Amarante Bardella.
Além de o artigo 3º, do PLP 68, trazer apenas a definição de “destinatário”, sem qualificar quando seria ele “final”, é notável que “destinatário” e “adquirente” (incisos IV e V) são coisas distintas. E tal distinção poderá trazer dificuldades quando se estiver diante uma importação indireta.
Com efeito, o parágrafo único do artigo 72 faz referência somente à importação por conta e ordem de terceiros, para ali definir que “o importador… é o adquirente”. Nada diz sobre a importação por encomenda, sendo que, no seu inciso I, estabelece que o importador é “qualquer pessoa que promova a entrada de bens materiais de procedência estrangeira no território nacional”.
Segundo o artigo 68, o local da importação é determinado pela “entrega” do bem ao “destinatário final”, mas o contribuinte do IBS e da CBS é aquele que promove a “entrada” no território nacional ou, no caso específico da importação por conta e ordem, o “adquirente” do bem de procedência estrangeira. Talvez seja o caso de rever a redação desses dispositivos e contemplar também disposições explícitas para tratar da importação por encomenda.
Agora voltemos os nossos olhos para as operações com serviços e bens imateriais.
Até hoje, é notável a imprecisão da Lei Complementar nº 116/2003 quanto à incidência do ISS na importação de serviços e à desoneração das exportações.
Tentando interpretar, de modo harmônico, os artigos 1º, § 1º, e 2º, inciso I e parágrafo único, é possível extrair que: (i) o serviço é importado quando a sua execução for proveniente ou iniciada no exterior, mas o seu “resultado” se verificar no Brasil; (ii) o serviço é exportado quando a sua prestação provier ou for iniciada no Brasil, com a verificação do seu “resultado” no exterior; (iii) se for integralmente executado no exterior e ali também se verificar o seu resultado, tratar-se-á de serviço alheio à competência tributária brasileira; e (iv) se for integralmente executado no Brasil e aqui se verificar o resultado, tratar-se-á de serviço prestado internamente e sujeito normalmente à incidência do ISS.
A competência tributária ativa para se exigir o ISS na importação pode ser extraída, indiretamente, da dúbia definição de “responsável” prevista no artigo 6º, § 2º, na qual se afirma que será considerado como tal o tomador ou o intermediário de serviço.
Tendo o serviço sido tomado por uma pessoa em um município, com intermediação de outra pessoa situada noutra cidade, de quem será a competência para exigir o ISS? A competência é determinada pela residência, pelo domicílio, pelo local do estabelecimento do tomador ou do intermediário? Ou pelo local do resultado do serviço?
Passados mais de 20 anos, não há respostas claras para essas perguntas.
Já com relação às exportações, a falta de clareza sobre o conceito de “resultado” é gritante e se reflete nas três linhas de interpretação adotadas na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: resultado como sinônimo da própria atividade; resultado como utilidade ; e resultado como consumo .
Não bastasse isso, somos obrigados critérios arbitrários criados pelas administrações municipais, a exemplo do que é feito no Parecer Normativo nº 4/2016, da Secretaria de Fazenda paulistana, obedientemente aplicado pelo Conselho Municipal de Tributos e criticado com consistência e fundamentação no Parecer Normativo Cosit nº 1/2018, da Secretaria da Receita Federal.
Também é notável a falta de harmonização dos conceitos de exportação relativos ao ISS e às contribuições PIS/Cofins-importação, especialmente com a questão do local de onde provém o pagamento, o que é irrelevante para o ISS (artigo 2º, parágrafo único, da LC 116), mas determinante para as duas contribuições (artigos 6º, inciso II, da Lei nº 10.833/2003, e 5º, inciso II, da Lei nº 10.637/2002).
Olhando para o futuro e para o PLP 68, então, pode-se esperar ainda muitas incertezas, seja para identificar quando haverá exportação fora do alcance do IBS e da CBS, seja para determinar o destino da importação do serviço ou do bem imaterial tributado. Lado a lado, as operações de exportação e importação são assim tratadas no texto atual do projeto:
Ainda há regras diferenciadas para alguns serviços sujeitos a regimes específicos de incidência do IBS e da CBS, com destaque para a fórmula simplificadora de qualificação da exportação no caso dos artigos 226, 244 e 295, onde os tributos são afastados quando o serviço for prestado a residente ou domiciliado no exterior. Ainda assim, sem clareza se se está referindo ao destinatário ou ao adquirente do serviço ou bem imaterial.
Todas essas regras, como se nota, repousam sobre um amplo leque de conceitos indeterminados, o que poderá trazer um enorme custo para que possam ser interpretadas e aplicadas sem conflitos entre as partes da relação jurídico-tributária. Se hoje, em matéria de ISS, esses conflitos seguem não solucionados quanto ao conceito de “resultado”, imagine-se o que nos aguarda quando discutirmos as expressões “utilização”, “exploração”, “aproveitamento”, “fruição” e “acesso”, para saber se o consumo do serviço ou do bem imaterial ocorre no Brasil ou no exterior.
Por fim, não se pode deixar de notar a dessintonia entre esses elementos caracterizadores do consumo do bem imaterial ou do serviço, em comparação às normas do artigo 11, segundo o qual se considera como local da operação, no caso de:
(1) serviço prestado fisicamente sobre a pessoa física ou fruído presencialmente por pessoa física: o local da prestação do serviço;
(2) serviço de planejamento, organização e administração de feiras, exposições, congressos, espetáculos, exibições e congêneres: o local do evento a que se refere o serviço;
(3) serviço prestado fisicamente sobre bem móvel material e serviços portuários: o local da prestação do serviço;
(4) serviço de transporte de passageiros: o local de início do transporte;
(5) serviço de transporte de carga: o local da entrega ou disponibilização do bem ao destinatário;
(6) serviço de exploração de via, mediante cobrança de valor a qualquer título, incluindo tarifas, pedágios e quaisquer outras formas de cobrança: o território de cada Município e Estado, ou do Distrito Federal, proporcionalmente à correspondente extensão da via explorada;
(7) serviço de telefonia fixa e demais serviços de comunicação prestados por meio de cabos, fios, fibras e meios similares: o local de instalação do terminal; e
(8) demais serviços e demais bens móveis imateriais, inclusive direitos: o local do domicílio principal do destinatário.
O local do “consumo” do serviço ou bem imaterial deve coincidir com o “local da operação”? Se for isso, na hipótese residual referida no item (8) acima, o local do “consumo” equivalerá ao local do domicílio principal do destinatário, utilizando-se para tanto as regras do artigo 11, § 3º?
São perguntas para as quais o Senado talvez deva voltar a sua atenção ao rever o texto aprovado na Câmara, para quiçá simplificar e harmonizar os conceitos empregados e, com isso, tornar mais clara a futura submissão de importações e exportações aos novos tributos criados na reforma.
Fonte: Conjur